Eleição, que será financiada por EUA, Canadá e União Européia, está prevista para 9 de outubro e 16 de novembro. Mas dez meses após o início da ocupação do país caribenho pelas forças de paz da ONU, o caos social reinante e o clima de violência impedem a construção de um cenário político-eleitoral estável.
Marcadas para outubro e novembro deste ano, as eleições gerais no Haiti têm tudo para dar errado e se transformar em mais um simulacro de democracia, a exemplo do ocorrido recentemente em Afeganistão e Iraque. Dez meses após o início da ocupação do país caribenho pelas forças de paz da ONU, o caos social reinante e o clima de violência impedem a construção de um cenário político-eleitoral estável.
Algumas forças políticas, como as ligadas ao presidente deposto Jean-Bertrand Aristide, por exemplo, jogam abertamente para sabotar o processo. Diante desse quadro, e frente a um trabalho de cadastramento de eleitores que mal começou, as autoridades nacionais e internacionais correm contra o relógio para tentar salvar as eleições e acender uma luz no fim do túnel para o Haiti.
O tempo parece realmente curto para organizar as eleições previstas para os dias 9 de outubro e 16 de novembro. Em duas fases, a população haitiana deverá escolher seus representantes para todos os cargos eletivos, de vereador a presidente da República. Idealizado por Estados Unidos e França, países que “apadrinharam” o golpe em Aristide, o gigantesco processo eleitoral parece por demais ambicioso num país onde mais da metade da população sequer tem documentos de identificação e onde não existe tecnologia que permita um cadastramento de eleitores confiável em tempo hábil. O Conselho Eleitoral Provisório (CEP), entidade constituída para coordenar o processo eleitoral, estima em 4,5 milhões o número de eleitores que precisam ser cadastrados em todo o país.
O prazo estabelecido inicialmente para a conclusão desse processo - fim de julho - soa irreal diante do quadro atual. O cadastramento, segundo informação do CEP, será feito através do registro de fotografias e impressões digitais dos eleitores que apresentarem algum documento de identidade. Aqueles que não tiverem documentos a apresentar em um dos 420 cartórios que estarão fazendo esse serviço em todo o país poderão obter seu título de eleitor desde que apresentem duas testemunhas que já estejam cadastradas como eleitoras e confirmem sua identidade. O objetivo do CEP é conceder entre 50 e 60 mil novos títulos de eleitor até o fim de julho.
A tentativa de se estabelecer um patamar tecnológico mínimo que permita a coordenação do processo será bancada por Estados Unidos, Canadá e União Européia, que se comprometeram a doar conjuntamente US$ 40 milhões para financiar as eleições. Essa verba, no entanto, ainda não chegou ao Haiti. O gerenciamento do processo eleitoral ficará a cargo da Organização dos Estados Americanos (OEA), que já conta com dezenas de funcionários no país e deve multiplicar seu efetivo nos próximos meses, com o apoio das tropas da ONU.
Para muitos analistas, no entanto, a estrutura existente não é suficiente. “Por tudo o que vimos no Haiti, posso afirmar que a OEA sozinha não tem condições de coordenar as eleições” diz a economista Sandra Quintela, uma das representantes do Brasil na Missão Internacional de Investigação e Solidariedade que esteve no Haiti entre os dias 3 e 9 de abril. O grupo, composto por 20 representantes da sociedade civil de oito países, escreveu um documento onde propõe, entre outras coisas, o envolvimento de outras organizações da sociedade civil internacional na coordenação do processo eleitoral haitiano.
Noventa e um partidos
O que já existe de campanha eleitoral nas ruas das cidades tomadas pelo lixo acumulado e pela disputa entre gangues armadas, segundo os observadores, é baseado em ameaças e disputas de interesses locais, quadro que tem afastado a participação da população no processo. O CEP tem registrados nada menos que 91 partidos políticos que planejam participar da alguma forma das eleições de outubro e novembro no Haiti, cacofonia que só aumenta a confusão dos eleitores. Para piorar, alguns dos partidos outrora mais importantes, ligados em sua maioria ao ex-presidente Aristide ou a oligarquia que o apoiava, estão propondo o boicote à eleição.
O maior desses partidos está dividido. Legenda que abrigava Aristide, o Lavalas tomou posição oficial em que exorta a população a não legitimar o processo eleitoral. Uma fração do partido, no entanto, rompeu com o grupo do ex-presidente e declarou que pretende participar do pleito utilizando a legenda. Esse racha no Lavalas - que conta com milhares de simpatizantes em todo o Haiti - aumenta a tensão eleitoral a cada dia que passa, sobretudo em bolsões ainda controlados por aliados de Aristide, como os bairros de Bel-Air e Cité Soleil, na capital Porto Príncipe.
“Não haverá eleições autênticas até que Aristide esteja novamente no Haiti. Se quiserem escolher um dos mercenários que trabalham para os imperialistas, que o façam, mas não podem chamar isso de eleições”, disse o chefe do Lavalas em Cité Soleil, John Joseph, em entrevista à agência de notícias IPS. O ponto de vista do líder partidário é compartilhado por milhares de haitianos que, desde o fim de fevereiro, vêm realizando manifestações pela volta de Aristide em diversos pontos do país.
No outro lado do ringue está o ex-senador Gerard Gilles, que anunciou sua pré-candidatura à presidência da República e insiste em utilizar a legenda do Lavalas. Gilles, que assim como os colegas perdeu o mandato depois do golpe, reclama, no entanto, da perseguição que a ala moderada do partido estaria sofrendo por parte do governo provisório. “A maioria do partido quer participar das eleições. Se houver apoio à ala moderada, que pretende lançar minha candidatura à presidência, aqueles que estiverem receosos de assumir a participação o farão com mais tranqüilidade”, disse.
Capacidade de escolha
Também integrante da missão internacional que esteve no Haiti em abril, o jurista e especialista em direitos humanos João Luiz Duboc Pinaud avalia que o clima de insegurança, aliado à desarticulação das organizações do movimento social no país caribenho, não favorece o processo eleitoral. “O Haiti não está num momento de escolhas. Os movimentos sociais, apesar de seu histórico de lutas, estão fragmentados e sem capacidade para intervir positivamente nas eleições”, disse.
Pinaud também critica o calendário eleitoral estabelecido pela OEA. “O ideal seria a adoção de uma série de medidas para fortalecer a sociedade haitiana antes de se pensar em eleições”.
A sensação de insegurança vem se acentuando desde o fim de março, quando teve início uma série de atentados contra sedes do CEP. No dia 29 de março, homens que passavam em um caminhão dispararam com armas automáticas contra uma sede da comissão em Bel-Air. O mesmo edifício seria atacado dias depois com granadas, também lançadas de dentro de um veículo. Outra sede do CEP também já foi alvo de tiros e pedradas em abril. Nenhum dos ataques resultou em vítimas fatais, mas a sensação é de que isso pode ocorrer a qualquer momento.
Apesar dos pesares, o primeiro-ministro interino do Haiti, Gerard Latortue, permanece afinado com o discurso das forças internacionais e defende as eleições de outubro e novembro. “A realização das eleições e a posse dos novos eleitos é a única maneira possível de dar um perfil de estabilidade ao país”, disse. Membro da direção do CEP, Patrick Féquière é menos otimista. “O governo interino, a ONU e a OEA dizem que as eleições são prioridade, mas me pergunto se é disso que o Haiti precisa num momento como este que está vivendo. Não me parece óbvio”, disse, em entrevista à IPS.
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