A secretária de Estado dos EUA fala no Memorial JK, em Brasília. Sua visita ao Brasil (e a Chile, Colômbia e El Salvador) pode apontar a uma inflexão da política externa norte-americana, com abertura de maior espaço à América Latina. Trata-se de uma boa nova ou a reafirmação de uma velha prática intervencionista? A análise é do historiador Francisco Teixeira.
Quando da primeira campanha eleitoral de George Bush, em 2000, o candidato republicano discursou em espanhol, falou para a (expansiva) minoria hispânica no país e referiu-se, constantemente, a Vicente Fox e ao México como uma prioridade nacional dos Estados Unidos.
Da mesma forma a consecução da Alca foi um ponto de destaque na suas primeiras iniciativas, encarregando o chefe do Escritório de Comércio Exterior dos Estados Unidos, R. Zoellick - um ex-executivo da Enron, uma das empresas financiadoras da campanha de Bush - de negociar, muitas vezes de forma neolítica, a zona de livre-comércio das Américas.
Os cruéis atentados de 11/09/2001 paralisaram, e alteraram profundamente a agenda latino-americana da Administração Bush.
No mesmo dia do atentado terrorista - 11/09 -, o conjunto de chanceleres das Américas, incluindo aí Colin Powell, assinavam em Lima a Carta Democrática das Américas. Tratava-se de um instrumento jurídico básico, incorporado à constituição da OEA, que estabelecia o compromisso formal e irrecusável de rejeição a qualquer alteração de governo no continente através de meios extra-legais, inconstitucionais e violentos.
Depois de quase três décadas de ditaduras - a maioria apoiadas diretamente por Washington -, o conjunto da América rechaçava a violência e o rompimento da constitucionalidade como instrumentos de mudança da ordem constitucional. Infelizmente, menos de dois anos depois, em abril de 2002, os Estados Unidos (seguidos da Guatemala, da Espanha de Aznar e do Vaticano) reconheciam de imediato um golpe de Estado em Caracas.
Durante apenas 48 horas, Pedro Carmona , o breve - um empresário ligado ao Opus Dei e visceralmente anti-Chávez - liderou um governo que demitiu os governadores, fechou o Supremo Tribunal e censurou os meios de comunicação. No bojo do largo conflito aberto entre as diversas forças sociais na Venezuela, os Estados Unidos perfilaram ao lado dos segmentos golpistas, recusando a própria essência da Carta de Lima.
Condoleezza e a Diplomacia Americana
A chegada de Condoleezza Rice para a chefia da diplomacia americana não é exatamente uma surpresa. A situação do general Colin Powell era extremamente desconfortável, com suas sérias dúvidas - que se confirmaram - acerca da condução da guerra no Afeganistão e, principalmente, no Iraque. Ao mesmo tempo, as informações fornecidas pelo governo ao Departamento de Estado para advogar, no plenário da ONU, a urgência do ataque contra Saddam Hussein (dados fornecidos pela CIA sobre as chamadas armas de destruição em massa) mostraram-se falsos. Houve um claro descrédito do secretário de Estado, algo que o general jamais aceitou.
Assim, a ascensão da moça estudiosa, expressiva e culta, nascida no Alabama, em 1954, foi uma decorrência natural do esvaziamento da posição do então secretário de Estado. “Condi” possui o perfil exato: afro-americana, formada pela prestigiosa Stanford University, especialista em União Soviética e com larga experiência na administração pública. Rice, logo após o término de seus estudos, foi para o Institute for International Studies e, mais tarde, para a Hoover Institution, onde se aproximou do Partido Republicano e passou a exercer várias consultorias na área de relações internacionais.
De 1989 até 1991, no governo Bush (pai) foi membro do Conselho de Segurança Nacional, encarregada da Europa Oriental, além de conselheira da Junta de Chefes de Estado-Maior. Pouco depois passou a ser uma “special advisory” do presidente, onde travou um contato íntimo com a família Bush, que a incorporou de braços abertos.
Tais contatos prestigiosos acabaram por levar “Condi” a tornar-se membro do Board de administração da poderosa companhia petroleira Chevron Corporation, além de ocupar um cargo de direção na Flora Hewit Foundation - ligada ao conglomerado HP de informática - e tornar-se conselheira do International Advisory Council, do megabanco e financeira JPMorgan.
Assim, relações internacionais, conservadorismo político e o mundo dos grandes negócios tornaram-se bastante familiares para Condoleezza Rice, abrindo caminho para a chefia do Conselho de Segurança Nacional - no primeiro mandato de Bush - e, agora, secretária de Estado.
A ascensão de Condoleezza a levou, em primeiro lugar, à Europa. Com as relações bastante truncadas em virtude da invasão do Iraque e as grosserias diplomáticas de Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz e Richard Bolton sobre a “velha Europa”, “Condi” esbanjou charme e simpatia, possibilitando um sopro de ar fresco nas relações dos Estados Unidos com seus aliado europeus.
“Condi” e a América do Sul
A atual viagem da secretária de Estado se dá num dos momentos mais tensos e inovadores da vida política do continente. Somente este ano deram-se graves crises institucionais na Bolívia e no Equador, além do agravamento da instabilidade na Colômbia e o avanço dos sentimentos antiamericanos na Venezuela. Há muitos anos a imagem dos Estados Unidos não surgia tão negativa aos olhos dos latino-americanos: Iraque, unilateralismo, intervencionismo, Alca... uma imensa e pesada agenda negativa.
Rice aponta, com seu charme pessoal, para inverter a pauta e criar condições positivas no relacionamento entre a América do Sul e os Estados Unidos. Há alguns dias, antes da vinda da secretária de Estado, o general Richard Myers, comandante supremo dos Estados Unidos, havia feito uma séria de ameaças contra regimes “perturbadores da ordem”, citando especificamente Chávez; pouco antes, Donald Rumsfeld, em encontro com o vice-presidente José Alencar, criticara duramente a Venezuela. Além disso, num claro esforço de interferência nos assuntos internos da Venezuela, os Estados Unidos solicitara que a Rússia e a Espanha não vendessem armas a Caracas.
Ao lado de tais iniciativas, um navio aeródromo americano foi deslocado para Aruba, em frente à Venezuela, onde iniciou manobras de desembarque.
No Equador, a população revoltada - “los foragidos” - exigem do atual presidente Alfredo Palacio uma agenda antiamericana: saída dos 500 marines da base de La Manta, fim da dolarização e suspensão das negociações de uma área de livre-comércio com os Estados Unidos.
A viagem de Rice vem, assim, em busca de positivar a agenda. Neste sentido, a escolha do Brasil como interlocutor é um passo essencial da diplomacia norte-americana visando uma reinserção positiva no continente.
A democracia segundo Condoleezza Rice
Mesmo antes de pisar em solo brasileiro, “Condi” iniciou um charmoso trabalho de “amaciamento”. Numa previamente anunciada entrevista - a uma rádio russa, não nos Estados Unidos - definiu o programa nuclear brasileiro como “pacífico” e fez inúmeros elogios à condução da economia brasileira.
Rice, que já havia conversado com o ministro José Dirceu na América, buscou influir junto ao Brasil visando limitar as ações de Chávez, insistindo no caráter não democrático da “revolução bolivariana”. Ante a insistência do chanceler Celso Amorim sobre as regularidades das eleições venezuelanas, “Condi” declarou textualmente: “A democracia não é apenas eleições, mas também escolas, saúde, direito de livre-expressão para todos”. Sem dúvida “Condi” está correta: eleições havia na própria URSS e não podemos afirmar que aquele era um país democrático.
O estranho no conceito de democracia de Rice é sua relatividade: ora, se democracia não são apenas eleições - ponto para a secretária, uma afirmação corretíssima! - torna-se absolutamente claro que o presidente Bush equivocou-se ao saudar as eleições no Afeganistão, no Iraque ou seu arremedo na Arábia Saudita como o estabelecimento de um regime democrático. Um simples comparação entre Caracas e Bagdá sobre parâmetros de democracia, conforme ensina Condoleezza Rice, deitaria por terra as alegrias de Bush sobre sua intervenção no Iraque.
Se a teoria política e as noções de democracia de “Condi” sugerem uma certa confusão, os conhecimentos históricos da “historiadora Rice” são ainda mais precários. Em discurso improvisado em Brasília, a secretária de Estado lembrou o passado recente da América do Sul, cheio de golpes de Estados, conflitos civis, brutalidade de ditadores e visões antiamericanas. Ora, no passado recente do país os “golpes de Estado” e os “ditadores brutais” - Videla, Lanusse, Pinochet, Bordaberi, Banzer etc. - foram todos apoiados pelos Estados Unidos e, ao que a história tenha registrado, tinham visões exatamente pró-americanas, e não antiamericanas.
Assim, Rice cometeu duas impropriedades na sua atual visita: de um lado, se recusa a ver o papel de interferência e de apoio dos Estados Unidos aos piores regimes liberticidas do continente e, de outro, continua a prática intervencionista.
Se, nos anos de Guerra Fria a intervenção se dava em nome da pertença ao “mundo ocidental”, justificando o apoio aos ditadores locais - muitos inventados nas escolas anti-insurgência da América -, hoje a intervenção vem em nome da democracia. Uma democracia relativa, diferente em sua abrangência em se tratando de Cabul, Bagdá, Riad ou Quito, La Paz e Caracas.
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