Na última semana, por duas vezes, o presidente Bush veio à público contestar os críticos da Guerra no Iraque, com o argumento de não se possuir outra alternativa. Embora reconhecendo que a guerra não foi – e não está sendo – o “passeio” previsto, Bush insistiu várias vezes que a vitória estava perto. Assim, mais uma vez mostrava-se – tal qual os presidentes americanos durante a Guerra do Vietnã – incapaz de pensar em uma grande estratégia para a paz, tanto no Iraque, quanto em todo o mundo.

O vazio de iniciativas e de personalidades notáveis capazes de liderar o mundo na direção da paz acentuam o conceito de Washington de que vivemos em um mundo de guerra e sem segurança. As lideranças mundiais – Blair, Chirac, Merkel, Putin e os chineses – mostram-se medíocres em face às exigências mundiais, permitindo que um homem sem idéias reine de Washington sobre um mundo sombrio.

O fim da Guerra Fria e suas esperanças
Superada a Guerra Fria (1947-1991), sua geopolítica e as implicações da bipolaridade (Estados Unidos versus União Soviética) para a segurança e a defesa nacional das nações, cabe problematizar as novas condições vigentes nas relações internacionais depois de 1991 (fim da União Soviética). Durante o período entre 1991 e 2001 – Administração Bush, sênior e as duas Administrações Clinton – deu-se uma grande expectativa, amplamente otimista, num reordenamento mais harmonioso das relações internacionais, com a diminuição da pressão e das exigências sobre segurança e defesa das nações.

Contudo, desde 1993 – com o primeiro ataque terrorista ao World Trade Center e os subseqüentes ataques às embaixadas americanas no Quênia e Tanzânia, depois às tropas americanas na Arábia Saudita e ao USS Cole, culminando no ataque de 11/09/2001 contra Nova York e Washington – tal fase de transição encerrar-se-ia de forma trágica, inaugurando uma nova fase de pessimismo e de obsedante preocupação com segurança e defesa nacional.

Ao mesmo tempo em que avançam as novas condições de insegurança e incerteza, avança também, de forma paradoxal, a Globalização. As condições técnicas e econômicas para a generalização da circulação de idéias, capitais, bens etc. asseguram o surgimento de uma rede global de transições de bens materiais e imateriais, de trocas simbólicas e de alto valor financeiro, criando pela primeira vez – de forma absoluta – a anunciada aldeia global .

O paradoxo antes afirmado explicita-se nas características mais marcantes do framework da globalização: um mundo mais unificado, mais inseguro e mais incerto. Emergem, em especial após 2001 – Administração Bush, Junior e os mega atentados terroristas – uma forte tensão – política, teórica e econômica – entre unilateralismo versus multilateralismo, com retorno da guerra inter-estatais (como no Afeganistão, 2001 ou Iraque, 2003) ou intra-estatais (Congo/Kinshasa, Sudão) e a recorrência dos genocídios (Iugoslávia, 1999; Sudão, 2005) [1] .

O Unilateralismo

O caráter multilateral das crises e a emergência do unilateralismo lançam suas bases teóricas e políticas em antigos paradigmas do campo das Relações Internacionais e promovem compreensões diferenciadas das novas condições vigentes nas relações internacionais pós-1991. Tais paradigmas serão, por sua vez, as bases para a formulação de políticas nacionais de Segurança e Defesa Nacional também diferenciadas, e muitas vezes concorrentes entre si. Mesmo no interior de países o debate entre unilateralismo e multilateralismo, muitas vezes tingido pela antiga rivalidade teórica entre idealistas kantianos e realistas hobsenianos, atingira o conjunto das instituições formuladores de políticas públicas na área de Relações Internacionais, Segurança e Defesa (RI,S&DN) [2] .

Debates em torno da manutenção de forças armadas ou sua transformação em milícias cidadãs, com funções de polícia voltadas exclusivamente para as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO); o pragmatismo na formulação da política externa em face das exigências de ONGs e de setores de classes médias urbanos em torno de uma política externa ancorada em eixos como defesa dos direitos humanos e da preservação da natureza; e a formulação de alianças com a potência hegemônica, a constituição de blocos regionais e a renúncia a prerrogativas clássicas do Estado-Nação são apenas alguns dos temas em debate em torno da formulação de políticas de RI, S&DN com grande evidência nos gabinetes e na mídia especializada.

Em busca da segurança

O quadro anterior, apenas esboçado, ilumina as novas condições existentes nas relações internacionais e seu impacto contemporâneo sobre as suas condições de formulação e de crítica. Hoje, cada Estado-Nação, em qualquer canto do planeta, vê-se em face a escolhas decisivas, entre as quais se impõe pensar criticamente as condições hoje existentes na nova ordem mundial. Entre tais decisões estratégicas, devemos destacar:

 a tendência de dissolução de atributos clássicos do Estado-Nação – tais como moeda nacional, direito exclusivo, representação – no interior de blocos regionais ou macro-regionais;
 a tendência a considerar a segurança como fenômeno coletivo, garantido através de instituições multilaterais, tais como ONU, OEA, Otan etc.;
 a tendência crescente de incorporação ao Global Play, no antigo Grand Jeu da diplomacia mundial no século XIX, de novos atores globais, para além do Estado-Nação, tais como as grandes firmas, as ONGs, as instituições multilaterais (OMC, G-7 etc.).

Estes novos atores globais – uma realidade cada vez mais avassaladora em R.I. – apresentam uma multiplicidade de formas e ações, criando grave impasse nas ações do Estado-Nação, muitas vezes superados na nova dinâmica da ordem mundial [3]. Entre as diversas Gestalt que assumem estes novos atores mundiais, devemos destacar:
 os novos atores positivos, como ONGs, como o Green Peace, e organizações multilaterais, como a OMC, capazes de ação regulatória ou de forte pressão sobre o Estado-Nação, limitando sua ação no plano externo e interno;
 os novos atores negativos, como as máfias transnacionais e o crime transfronteiriço, como o narcotráfico, o contrabando de pessoas, armas e o comércio ilegal da biodiversidade;
 as grandes firmas gestoras de bens materiais e imateriais, como a mídia e o comércio on-line , a Internet, os gestores mundiais de hot money , as consultorias e as administrações de saberes.
Alguns apontam em tal constelação a forte presença de chaves de leitura impregnadas pelo debate clássico sobre o caráter e a natureza das relações internacionais, com diagnósticos diversos a partir das abordagens unilateralistas ou multilateralistas das atuais condições de evolução das relações internacionais.

Em especial, a abordagem oferecida por Negri&Hardt, ainda sob o impacto das gestões em torno de uma governança mundial durante as duas Administrações Bill Clinton (em um contexto onde Tony Blair e, mais modestamente, Fernando Henrique Cardoso, desempenharam um papel central), serviu de ponto de partida para algumas interpretações que se mantiveram por algum tempo hegemônicas [4] .

Contudo, o fracasso de uma “Administração Al Gore”, a vitória de George Bush, em 2001, e os terríveis impactos causados pelo 11/09 fazem retroceder as idéias de uma governança mundial, de um “Império sem endereço” e de uma multiplicação de agentes multilaterais – OMC, ONU, G-& (ou sua versão ampliada, com Rússia, Índia, Brasil etc.) responsáveis pela gestão mundial. O retorno, em força, do conceito de interesse nacional – sua assunção pelos Estados Unidos, de forma aberta, e em seguida por Israel, França, Rússia, Índia, Paquistão – acentuam o ano de 2001 como forte divisor de épocas nas relações internacionais e em suas implicações para o campo da Segurança e Defesa Nacional.

Frente a este amplo quadro, necessariamente incompleto, do impacto da Globalização e da viragem do ano 2001, o campo das R.I., S&DN enfrenta novos desafios, decorrentes das características da própria “Nova Ordem Mundial”, gerada entre 1991 e 2001.

Um mundo mais inseguro

Já de forma clássica poderíamos afirmar que a desaparição da Bipolaridade, com o fim da Guerra Fria ( 1985-1991 ) não transformou o mundo em um lugar mais seguro e mais previsível. Evidentemente o fim da condição M.A.D. – simultaneamente o risco de mútua destruição assegurada e a paralisia estratégica dos dois grandes contendores da época – foi um dado positivo em si mesmo. Contudo, a possibilidade acalentada de um fim da história – ou seja, o exercício tranqüilo e satisfeito da hegemonia ocidental e americana sobre o mundo – não se efetivou [5].

Em curto espaço de tempo, entre 1991 e 1993, na passagem da Administração Bush, sênior, para Administração Clinton imaginou-se que a Nova Ordem Mundial representaria o fim das guerras – ao menos das guerras inter-estatais, das crises mundiais e das grandes rivalidades. A diminuição dos orçamentos militares em todo o mundo – não só desmantelamento do Exército Vermelho, mas ainda a redução de despesas bélicas nos Estados Unidos, U.E. e Japão, com o surgimento de saldos orçamentários e fiscais, principalmente nos Estados Unidos, prenunciavam o caráter harmônico dos novos tempos.

Contudo, desde 1993, com o primeiro atentado contra o World Trade Center, os serviços especializados e os Estados-Maiores em todo o mundo perceberam que as crises não haviam sido banidas do cenário mundial e os riscos de segurança estavam bastante presentes [6].

Neste sentido, aos poucos, entre 1991 e 2001, forjou-se uma nova pauta de Ameaças Mundiais, que substituiriam claramente a antiga rivalidade Estados Unidos versus União Soviética. As formulações em torno do conceito de Novas Ameaças são variadas e apresentam grande diversidade. Contudo, podemos apontar para os seguintes elementos centrais:

 o narcotráfico e as demais máfias internacionais;
 o novo terrorismo internacional;
 as ameaças ecológicas e de esgotamento do patrimônio natural;
 as ameaças aos direitos humanos;
 as novas pandemias globais;
 a presença de estados-falidos e estados-párias nas Relações Internacionais.

Pela primeira vez se formulava uma agenda das relações internacionais, da segurança e da defesa das nações amplamente autônoma em relação às rivalidades inter-estatais. As questões capazes de gerar graves crises e impor situações de insegurança para a comunidade das nações centravam-se, agora, largamente em ações intra-estatais (ecologia, direitos humanos), transfronteiriços (máfias variadas) e na imperiosidade de um sistema mundial capaz de dar cobertura a uma política de state-building ali onde o antigo Estado-Nação entrara em colapso (Bósnia, Kossovo, Congo-Kinshasa, Timor Leste, Haiti, entre outros).

Assim, por um momento pareceria ao observador que as antigas ferramentas de R.I, S&DN, herdadas da Guerra Fria, não mais davam conta das questões colocadas. Várias conferências e acordos internacionais avançavam na direção de um arcabouço do Direito Internacional visando dar conta dos novos desafios – Protocolo de Kyoto, TPI, acordos de banimento de armas e de limitação de combate etc.

A nova geopolítica

Da mesma forma, a antiga geopolítica gerada ao final do século XIX e consolidada nas obras de MacKinder (1904) e de N. Spykman (1944) que servira de sustentação para o clássico enfrentamento das potências navais (Grã-Bretanha, Estados Unidos, França) contra as potências continentais (Alemanha, Rússia e depois URSS) não mais davam conta das relações internacionais. Assim, os antigos blocos militares ou entraram em colapso – Pacto de Varsóvia, Otase, Cento etc. – ou buscavam rapidamente um novo conteúdo definidor, como foi o caso da Otan ou do Tratado do Rio de Janeiro.

Questões centrais da ecologia – tais como no binômio recursos/escassez, como água e terras não-desertificáveis – tornar-se-iam elementos centrais na emergência de uma nova geopolítica [7]. Outros recursos, exatamente por seu uso antigo, tal como o petróleo, tornaram-se, por sua vez, foco de grandes atenções, gerando a preeminência de novas áreas planetárias, antes esquecidas (a região caspiana, na Ásia Central ou o Triângulo de Ouro – Nigéria/Gâmbia/Cabinda – no litoral africano). A persistência dos genocídios – Bósnia, Kossovo, Ruanda ou Sudão – ou simplesmente sua ameaça, como no Haiti, impunha ações rápidas derivadas da pressão da opinião pública [8].

Em todo este contexto surgiam, ou fortaleciam-se, novos atores globais, como ONGs especializadas – Greenpeace, Anistia Internacional, Attac etc. – ao lado da pressão crescente da opinião pública, alterando significativamente o antigo “secretismo” vigente na formulação de conceitos em Relações Internacionais.

Entretanto, a junção de fatos novos (Administração Bush + 11/09) viriam complicar, ainda mais, a agenda posta das novas ameaças mundiais. A resposta americana ao desafio, e ameaça, do 11/09 foi quase que exclusivamente em termos militares, centrando-se na ameaça representada pelo novo terrorismo mundial. Assim, os demais itens da pauta gerada nas administrações anteriores (Bush, sênior + Clinton) e de ampla adesão mundial (UE, G-7, emergentes etc.) foi duramente afetada, com itens excluídos, desprezados ou minimizados. A Guerra Global contra o Terrorismo Mundial tomou conta, de forma obsessiva, da nova agenda mundial.

[1RAMONET, Ignácio. Guerras do século XXI. Petrópolis, Vozes, 2002.

[2Ver BROWN, Michael ( ed. ). Offense, defense and war. Cambridge, MIT Press, 2004.

[3DAVID, Charles-Philippe. La Guerre et la paix. Approches contemporains de la sécurité et de la stratégie. Paris, Presses de Sci Pó, 2001.

[4HARDT, M. e NEGRI, A Império. Rio de Janeiro, Record, 2002.

[5VESENTINI, José William. Novas geopolíticas. São Paulo, Contexto, 2001.

[6LEMKE, Douglas. Regions of war and peace. Cambridge, University Press, 2002.

[7BONIFACE, Pascal. Les guerres de demain. Paris, Seuil, 2001.

[8TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A nova geopolítica do petróleo. In: www.agenciacartamaior.com.br, Internacional, 2005.