Pouco antes da invasão do Iraque, em 2003, os círculos neoconservadores americanos, aliados ao lobby do petróleo, imaginavam que a invasão do Iraque seria um grande passeio militar. Não precisariam gastar muito para isso e, ao mesmo tempo, testariam uma nova doutrina de guerra, que levaria o nome de seu reformular: Doutrina Rumsfeld. Devido a incontestável superioridade tecnológica americana – a última R.A.M., ou seja, Revolução em Assuntos Militares, marcada pela furtividade, pelo emprego de armas inteligentes e a superação da massa humana da infantaria – “boots on the ground” – e pela velocidade de máquinas e especialistas (as forças especiais). Além disso, a manutenção do território – segurança e serviços – deveria ser feita por mercenários contratados em grandes empresas de serviços, privatizando-se grande parte dos serviços dos exércitos tradicionais.

O resultado, após mais de 25 meses de guerra, é o risco imediato de colapso do país. A generalização da violência, após o atentado de 22/02 contra a Mesquita Dourada de Samarra – antiga capital do califado abássida no século X –, espalhou a insegurança e o medo em todo país. Várias autoridades americanas – incluindo o presidente Bush – começaram, na última semana, a falar em “colapso” generalizado. Nos últimos discursos, Bush insistiu em que a situação não era (ainda?) de “colapso”, contudo o próprio embaixador americano, Zalmay Khalizaid, afirmou – provocando reação adversa de Rumsfeld – que a invasão de 2003 teria aberto “a Caixa de Pandora”. Bush por sua vez insistiu na formação de um governo de ampla coalizão para evitar o “colapso”.

O “colapso” – risco concreto nestes dias – poderia advir da cessação de funcionamento da economia, duramente atingida; pela generalização da violência – Bagdá está sob um “ban car” generalizado – ou pelo colapso das instituições civis, na ocorrência da impossibilidade de se formar um governo. O dado mais assustador, neste sentido, é a soma do alto grau de violência com o desempenho econômico do governo pró-americano: a produção petrolífera do Iraque caiu, em 2005, mais 8%, passando de cerca de 2 milhões de barris/dia, em 2003 – sob Saddam Hussein e o regime de “ Oil for Foods” – para 1,5 milhões de barris/dia em 2005.

Ao mesmo tempo, a lista de mortos e feridos é impressionante: hoje os Estados Unidos já perderam 2.308 soldados, enquanto outros 17.004 foram feridos. Enquanto isso, no mínimo, 37.589 iraquianos foram mortos. Tais números, contudo, escondem um dado perturbador: o segundo maior exército em campo é formado de mercenários, com mais de 40 mil homens. Os seus mortos – como os mais de 50 abatidos na última semana – não entram em tais estatísticas.

Até quando os Estados Unidos, leia-se o Congresso Nacional americano, continuará injetando dinheiro no país? Tal pergunta torna-se de grande relevância política num ano de eleições de meio de mandato – em novembro de 2006 – quando a Administração Bush será avaliada e, ao mesmo, teremos um rascunho da ação dos dois partidos (democratas e republicanos) para a sucessão presidencial.

Uma geopolítica em movimento

As últimas semanas somaram uma série de eventos bastante graves, aumentando a tesão em toda a região. Além do imenso desastre que foi o ataque contra a Mesquita Dourada de Samarra (22/03/2006), dedicada aos imãs Al-Hadi Al-Askari (trata-se do imã Ali al-Hâdi, conhecido como “O Guia” e também chamado de al-Askari (827-869), líder “álida”, quer dizer descendente de Ali, genro do profeta, casado com Fátima, e pai dos mártires Hassan e Hussein, fundadores do xiismo), tivemos a radicalização da situação na Palestina (vitória do Hamas, retomada dos “assassinatos seletivos” por parte de Israel), o impacto da questão das charges do Profeta e, enfim, a radicalização da crise Irã/USA em face da Questão Nuclear.

Mais uma vez o Irã tornou-se a chave de toda possibilidade de paz (ou continuação da guerra) na região. O governo de Teerã é sistematicamente acusado – e a Síria também – de sustentar o terrorismo no país, num total nonsense, posto ser interesse de Teerã um regime xiita estável no país vizinho. Por outro lado, o próprio comandante americano em Bagdá encontra-se em contato direto que os serviços secretos iranianos - o sempre atuante Vevak – visando uma estratégia comum contra a Al Qaeda (sunita e anti-xiita). A crise sobre o controle da energia nuclear no país poderá ser um importante fator de insucesso de uma política comum na região contra o terrorismo islâmico. Para muitos nos Estados Unidos, principalmente Donald Rumsfeld, seria o caso de aproveitar a crise para alcançar todos os objetivos americanos no região, derrubando os governos de Damasco e Teerã, e entregando a Palestina a uma política de cantonização por parte de Israel.

Este seria, sem dúvida, o caminho do desastre total
Em termos de política psicológica e de guerra de comunicação, a situação é cada vez mais favorável aos resistentes sunitas e a Al-Qaeda na Mesopotâmia. A visão de um mundo ocidental hostil e agressivo em relação a ’Umma – a comunidade de muslin, ou fiéis – acaba por ser fortemente promovida. Na verdade, o International Crisis Group (ICG), uma organização dedicada à análise de conflitos internacionais – notoriamente pró-americana, e neste sentido fora de qualquer suspeita – apresentou em seu relatório anual sobre o Iraque uma visão bastante pessimista. Dois pontos foram destacados pelo ICG:

1) na área de comunicação e propaganda, os resistentes obtiveram vários sucessos notáveis, conseguindo – através de um uso superior da mídia eletrônica se comparado às ações promovidas por Bagdá e pelo Comando Aliado – grande penetração na opinião pública árabe, dentro e fora do Iraque. Destacou o ICG o emprego flexível e direto da Internet, incluindo-se aí o uso militar; 2) os resistentes conseguiram, ainda, um enraizamento profundo junto à população sunita no Iraque, assumindo claramente um papel diretivo na formulação de estratégias políticas de tal grupo.

Evidentemente Washington opôs restrições ao conteúdo do relatório. Contudo, a ONU publicou, ainda este mês, o seu relatório, Report Iraq, também bastante pessimista, chamando a atenção para a constante violação dos direitos humanos no país e na incapacidade das forças encarregadas de promover a reconstrução.

Formação do Novo Governo

Malgrado as declarações otimistas de Washington, os iraquianos ainda não conseguiram formar um governo a partir das eleições de 15 de dezembro de 2006. O rascunho do governo, apresentado antes da destruição da Mesquita Dourada, fora considerado “radical” (xiita) por parte dos Estados Unidos, que opuseram seu veto.

Ocorre que, após o atentado de 22/02, as forças xiitas sentiram-se mais isoladas e agredidas, radicalizando – ainda mais – sua posição. Assim, o controle do ministério da defesa, da polícia e do petróleo voltou a ser um tema central das exigências xiitas. Os sunitas, por sua vez, não abrem mão do controle das forças policiais, o fim da desbaatização e o retorno dos funcionários do regime de Saddam Hussein.

Numa estranha aliança – coordenada pelos Estados Unidos? – uniu sunitas e Jalal Talabani, o presidente curdo do país, que opuseram seu veto na recondução do premier Ibrahim al-Jaafari, xiita, religioso moderado, e parente do Grande Aiatolá Ali al-Sixtani. O conjunto de tais forças, sunitas e curdos (mais os Estados Unidos?), estaria vendo no avanço eleitoral dos xiitas (além do o estreitamento de laços com o Irã) uma grave ameaça aos seus interesses. Assim, Washington, o Acordo Nacional Iraquiano (sunita) e Jalal Talabani falam incessantemente em um “inclusive government”, onde os xiitas não teriam o controle completo do poder.

Ante o conjunto de atentados que atinge xiitas e seus lugares santos, tais exigências são consideradas insuportáveis.

No dia 10/03/2006 o presidente Jalal Talabani anunciou o adiamento da abertura do novo parlamento, alterando o calendário constitucional do país (prevê-se agora a convocação do novo parlamento para 19/03/2006). Sua reunião poderá acelerar a crise, posto que os deputados da maioria xiita poderão exigir a eleição imediata no plenário de um novo governo. Sob pressão americana, voltou-se para a possibilidade de um reunião do parlamento nesta sexta-feira (17).

Enquanto isso, as ruas de Bagdá, sob toque de recolher e banimento de todo o trânsito, continuam em chamas...