Neste segundo artigo da série Diário da Bolívia, o historiador Francisco Carlos Teixeira narra seu encontro com Evo Morales e discute o caráter do socialismo proposto pelo líder cocalero: comunitário, solidário e da posse e uso da terras entre os campesinos tradicionais da Bolívia.
A Bolívia encontra-se hoje no centro - talvez no olho do furacão - social e político dos movimentos sociais que criticam, ao longo de todo o Arco Indígena da América do Sul (Colômbia, Equador, Peru, Paraguai e a própria Bolívia), o sistema de representação e de participação política vigente no continente após a democratização iniciada nos fins dos anos 80. Desde que esse processo espalhou-se pelo continente, deu-se uma clara restauração conservadora, com os mecanismos e instituições políticas tradicionais assumindo o papel representantes da vontade popular.
Contudo, ao longo da existência dos regimes civis e militares de caráter autoritário - entre os anos 60 e 80 -, a agenda de exigências e expectativas populares ampliara-se enormemente. Na verdade, a resistência antiautoritária, a expansão da educação e dos meios de informação, bem como a percepção das imensas demandas sul-americanas acumuladas implicaram na construção de uma nova pauta, para além da democracia formal. Não bastavam mais, tal como nos anos 50, a simples extensão da cidadania política (com seus direitos de voto, de expressão e de organização autônoma).
A cidadania - sob a forma de uma representação cada vez mais ampliada - exigia agora a resolução de inúmeras questões sociais urgentes, como educação, saúde, terra e trabalho - além, cada vez mais agudamente, de segurança, em face de níveis elevados de violência urbana (como na Argentina, Brasil e México). Muitas vezes, ante a insensibilidade do poder público, tais exigências evoluíram em direção à formação de “comunidades práticas”, cada vez mais autônomas em face de antigas instituições de representação, tais como partidos e sindicatos.
A elite política sul-americana, por sua vez, continuava embalada na ilusão de usufruir do poder através de mecanismos variados de falsa representação, ou de representação meramente formal. Assim, seja através de mecanismos populistas e assistencialistas - numa ponta do espectro - seja através da simples e direta compra e corrupção do voto popular ou do estelionato político - mudança de programas ou de partidos - cavou largamente sua própria crise e descrédito. No conjunto do continente não há hoje uma maioria popular que acredite, seriamente, que possa mudar sua vida, forjar um projeto de transformação social através do voto e da sua ação mediada via a elite política atual.
Na Argentina, no Equador e na Bolívia, tal sentimento de “descolamento” entre representantes/representados e entre povo/elite política é radical, e culminou na deposição de governos. Na Colômbia, no Peru e no Brasil, o processo aproxima-se de um perigoso nível de contágio das instituições políticas, atingidas pelo descrédito que recobriu o conjunto dos políticos profissionais. Na Venezuela, cinqüenta anos de domínio político tradicional apenas ofereceram corrupção e manutenção da pobreza num país rico, abrindo caminho para um furacão política - o fenômeno Chávez.
Bolívia: o centro do Arco Indígena
Talvez seja hoje a Bolívia o país em que a crise da representação política tradicional seja mais evidente.
Após uma confusa e disputadíssima eleição - na qual os EUA, através de uma série de declarações despropositadas contra o candidato Evo Morales, do Movimiento al Socialismo, desempenhou um papel central - Sanchez de Losada, um político tradicional, amigo dos EUA e de forte ideologia neoliberal, foi eleito indiretamente pelo Congresso, derrotando Morales, acusado pelos EUA de envolvimento com o narcotráfico.
Na verdade, Morales é um importante líder camponês e dos cocaleros, que exige condições mais justas para a substituição do cultivo da coca, atividade milenar do campesinato indígena boliviano.
Losada, por sua vez, e iniciou uma série de reformas privatizantes, desde a distribuição da água potável até a exploração e exportação do gás e do petróleo. Após maciças manifestações populares - entre fevereiro e outubro de 2003 -, o governo ordenou uma brutal repressão, deixando 78 pessoas mortas - a chamada Guerra do Gás -, além de violentas razzias em bairros populares, como El Alto. Com a mediação argentina e brasileira, Lozada abandonou o país e refugiou-se nos EUA.
O Congresso, então, confirmou o vice-presidente Carlos Mesa, um empresário, jornalista e escritor sem partido como o presidente do país. Duas tarefas imediatas se apresentaram: de um lado, a elaboração de uma nova constituição para o país, de outro a votação da Ley de los Hidrocarburos, visando regular democraticamente o uso dos recursos naturais bolivianos, além da punição dos responsáveis pelos massacres de outubro.
Contudo, desde cedo, a população e o movimento social se sentem burlados: o Congresso Nacional, que deveria guiar tais ações, é o mesmo que elegeu Sanchez de Losada, com a hegemonia das forças conservadoras, contrárias a mudança social exigida pelo movimento popular de outubro de 2003. Após inúmeras idas e vindas, Mesa decide manter as privatizações de Lozada, se recusa a convocar as eleições e ameaça renunciar em 6 de março de 2005, numa evidente chantagem política contra a oposição.
O procedimento de Mesa, que buscava apoio no grupo empresarial de Santa Cruz de la Sierra e nos membros conservadores do Congresso, aliena definitivamente o movimento social e abre caminho para uma ativa oposição ao presidente. Em 6 de junho de 2005, após dias de bloqueios e páros, Mesa, inteiramente isolado, renuncia, acompanhado da renúncia de Vaca Diez, presidente conservador do Congresso, acusado de corrupção e sucessor legal do presidente em exercício. A presidência é, então, entregue ao presidente da Suprema Corte, o juiz Eduardo Rodriguez.
Com Evo Morales em Cochabamba
Foi com este cenário de intensa crise, no limite do rompimento das formas institucionais da representação, que me dirigi a um encontro com o presidente do Movimiento Al Socialismo, na cidade Cochabamba. Após uma semana de telefonemas entre Rio e La Paz - mediados por um amigo em comum -, lidando com os funcionários do Congresso e do partido, que me tratava como “compañero brasileño”, consegui agendar uma ida à Cochabamba. Trata-se de uma cidade - com pouco mais de 517 mil habitantes - espalhada em um amplo vale, com altas montanhas ao redor e um centro urbano harmonioso, limpo e florido: El Prado. Rolando, um jovem motorista, contador de histórias e sempre se referindo a Evo Morales como “Don Evo”, nos levou à sede da Federación Del Trópico, organismo de apoio aos camponeses locais e onde o MAS possui seus escritórios. Nada mais que um velho depósito, sujo e mal iluminado, intensamente frio - faziam quatro graus! - e onde o comando político da oposição se reunia.
Já eram mais de 18 horas, e assistimos a uma reunião do partido, onde predominavam jovens, a maioria estudantes, que discutiam a participação política. Conversei de forma rápida com Evo, que me encaminhou a Hernán, um jovem militante, memória do partido e seu guardião. Forte, falante e incisivo, Hernán me falou durante horas sobre o MAS: o partido surgiu em uma reunião em 1995, em Santa Cruz de la Sierra, em protesto pela dominação ideológica neoliberal sobre todas as demais instituições partidárias bolivianas. Em pouco tempo chegou a 21,7% do eleitorado boliviano, só não avançando mais em razão do público alvo do MAS ser “indocumentado” e, com isso não ter acesso ao sistema eleitoral.
De qualquer forma, o MAS é hoje a segunda força política do país, com 27 deputados e 7 senadores. O Altiplano é o centro nevrálgico do MAS - o “Oriente” e o Chaco apresentam evidentes fraquezas de implantação, em grande parte devido ao caráter excessivamente étnico do partido - com forte votação em Cochabamba, La Paz, Potosi e Oruro. A agenda partidária é clara: a nacionalização e a exploração estatal dos recursos naturais da Bolívia, fundamentalmente o gás e o petróleo. Além disso, trazer ao “Juício” Sanchez Lozada e os responsáveis pelas mortes de populares durante a Guerra do Gás em 2003.
Quando Evo fala:
Após longa conversa, toda perpassada por contra-perguntas que evidenciavam a curiosidade sobre o “brasileño” que fora atrás de Morales - e uma evidente simpatia pelo Brasil, por seu futebol - sempre comparado superiormente com o futebol argentino - Hernán marcou a entrevista para o dia seguinte com Evo.
Encontrei Evo sentado na sala principal do partido, junto à janela, ao sol do amanhecer, com uma vistosa camiseta com a estampa de Che Guevara. Ao fundo, na parede, a bandeira de quadrados multicoloridos representando a diversidade indígena boliviana.
Iniciei uma conversa tímida, de mútuo reconhecimento, partindo de um tópico do dia anterior: o que é o MAS? Qual o seu papel no processo político boliviano hoje? Foi nesse momento que a figura pacata, até mesmo sombria de Evo, se ilumina, há uma forte luz nos seus olhos e o rosto indígena assume traços de orgulho e grandiosidade.
É sempre assim quando Evo fala... surge uma força interior, um forte carisma e uma capacidade de empolgar multidões que bem explica o sucesso político e o poder de liderança desse indígena transformado em líder popular. A paixão, contudo, não importa em atropelos ou perda da racionalidade política. Evo responde sobre as questões básicas da política boliviana:
Pontos centrais da entrevista com Evo Morales:
- A crise da representatividade política boliviana implica na renegociação do contrato social boliviano através das eleições gerais de 4 de dezembro de 2005. Para Evo, a assembléia nacional constituinte que emergirá das eleições é a única saída para a crise: - tudo se define lá! (na constituinte), afirma com ênfase; trata-se de reinventar a política, a cidadania e a própria representação;
- Como um líder popular, Evo não apresentou - ainda - sua candidatura à presidência: não há, ainda, uma definição. Evo espera a manifestação dos sindicatos e das “federaciones”. A constituinte é maior que a presidência, afirma o deputado (de forma explícita há hoje quatro candidatos: os ex-presidentes Jorge Quiroga e Jaime Paz Samora, além de Juan Carlos Durán, do Movimento Nacional Revolucionário e Samuel Doria Medina, um próspero empresário da indústria de cimento, com fortes bases em Santa Cruz.);
- Na concepção de futuro de Evo, tem-se um grande destaque para a integração sul-americana, única forma de superar a intervenção e exploração das multinacionais acobertadas pelo poder dos Estados Unidos. Nesse sentido, Chávez e Fidel são “homens bons”, aliados, que muito fizeram para os povos do continente;
- A ação dos Estados Unidos no continente sempre foi, e ainda é, intervencionista e provocadora, claramente agressiva em relação ao MAS. Evo manifestou ainda grave “tristeza” pela ação do Paraguai frente aos Estados Unidos, aceitando a instalação de uma base militar que acessa o Chaco e ameaça os poços de petróleo da região, além de ter assinado num acordo - em 05/05/05 - que garante plena imunidade para os soldados americanos deslocados para o país;
- Porém, é quando discutimos a definição de socialismo e papel do MAS no futuro da Bolívia que Evo se transforma no verdadeiro líder campesino de seu país. Para Evo o MAS é a versão possível, moderna e autônoma em relação ao pensamento político formalista de matriz européia (marxismo, leninismo, trotskismo etc...), do socialismo americano, numa clara alusão à reconstrução do socialismo pós-1989.
O Socialismo da Madre-Tierra
Talvez tenha sido este o tópico mais relevante da entrevista, também o mais original, deixando explícito o conteúdo programático do MAS. O socialismo é entendido enquanto um conjunto de práticas concretamente dirigidas ao homem comum, visando ao trabalhador/camponês, em especial em áreas sensíveis como saúde e educação. Para isso, para a realização concreta de medidas de libertação da miséria, a conversão dos recursos provenientes dos hidrocarburos enquanto riqueza nacional é fundamental. Evo parece sincero, honesto e apaixonado.
Não é populista - seja lá o que este termo hoje possa efetivamente descrever! - e, sim, altamente messiânico, com referências diretas a Mãe-Tierra e a vida comunitária, coletivista, dos camponeses bolivianos. Para Evo, a presença da Terra-Mãe não é um mito, é uma realidade do cotidiano. Em qualquer aldeia que se visite, mesmo na sua aldeia, onde nasceu, as terras e os trabalhos são coletivos e solidários, ainda hoje, décadas depois da Conquista espanhola.
Somente quem conhece a presença de Pachamama na tradição índia campesina boliviana, em especial no Altiplano andino, camponês e índio (quéchua e aimara) pode realmente avaliar a força da idéia de uma Madre-Tierra ou Pachamama. As imagens e os relevos da civilização Tiwanaku - 80 km de La Paz, em direção ao Titikaka - no Altiplano, expressam uma forte religiosidade em torna da figura da mãe da terra, protetora das crianças e misericordiosa interventora em prol dos índios. A apropriação, e reelaboração da tradição, na fala de Evo Morales, agora numa direção nitidamente política, exerce uma forte presença na definição de socialismo do MAS.
Evo fala em 500 anos de dominação e exploração da população indígena. Ao retornar a mitos fundadores - como Madre-Tierra - recupera a autonomia política e ideológica dos grupos subalternos, reelabora a questão ambiental com grande autonomia, mostrando um homem-natureza (em face de um homem-máquina do capitalismo) sob a proteção de Chachapuma, o guerreiro/leopardo, protetor dos animais e dos homens. Assim, o discurso político do MAS realimenta a grande religiosidade local - muitas vezes com Pachamama, la Madre-Tierra, surgindo sob o manto das diversas virgens locais, ao mesmo tempo que se auto-valida e justifica lançando raízes num solo cultural de mais de dois mil anos.
Da mesma forma, com raízes profundas na comunidade indígena, Evo Morales busca na comunidade aldeã - el ayllu -, de origem colla, pré-inca e pré-hispânica, as bases do socialismo do MAS. Na entrevista, no momento único em que se mostrou inflamado e visionário, Evo insistiu no caráter comunitário, solidário, da posse e uso da terras entre os campesinos tradicionais da Bolívia. Nestas bases, num coletivismo espontâneo e histórico dos povos indígenas, o MAS foi fundar seu socialismo, tendo como meta maior a superação de 500 anos de exploração.
Da mesma forma, o conjunto do discurso do MAS surge como um elogio às mulheres, uma massa onipresente na Bolívia, sempre laboriosas, em constante azáfama, carregando crianças, bolsas e embrulhos, reafirmando a presença de Pachamama. Assim, no pós-crise de 1989 (Muro de Berlim) e do socialismo real na Europa Centro-oriental, Evo (tal qual o comandante Chávez, na Venezuela, ou Marcos, em Chiapas) busca raízes próprias para o “seu” socialismo. No seu conjunto o MAS rejeita, ou é indiferente, ao “academicismo” político do socialismo europeu, abandonado à sua própria crise e parte para a busca nas “origens” indígenas de uma plataforma política renovada e libertadora.
Uma comparação entre Evo e Chaves é incontornável e esclarecedora, com programas que estabelecem objetivos quase idênticos e metas muito próximas. Contudo, Chaves - mesmo sendo tecnicamente cholo, mestiço - insiste nas origens européias, brancas, do seu socialismo: em longa entrevista Chaves respondeu sobre as bases do socialismo da Revolução Boliviariana citando de Jesus até Bolívar. Já Evo radicaliza o procedimento e busca na noite da história de Tiwanaku as origens legitimadoras do socialismo do MAS.
Um outro ingrediente de forte presença no Socialismo do MAS é o nacionalismo, fortemente boliviano e sul-americano. A presença protetora e maternal de Pachamama evolui, neste momento, para a figura guerreira de Chachapuma, podendo assumir um discurso guerreiro inflamado em face à Questão do Pacífico, à felonia chilena e, agora, com a parceria Chile/EUA, a ambição em controlar os hidrocarburos, a última riqueza da Bolívia.
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