Ramadã, votação do projeto de Constituição e julgamento de Saddam Hussein insuflam resistência e tornam o mês de outubro o mais difícil de 2005 para os soldados dos EUA no Iraque. Acusada pela imprensa mulçumana, Casa Branca nega uso de armas químicas pelas forças armadas norte-americanas.
O mês de outubro, conforme advertência do presidente Bush, deverá ser o mais difícil para os americanos depois da ocupação do Iraque. Outubro é o mês do Ramadã – um mês santo para muçulmanos, xiitas e sunitas, com grandes manifestações de religiosidade popular. Além disso, o projeto de Constituição deverá ser votado ainda esta semana, no dia 15 de outubro e, por fim, o julgamento de Saddan Hussein deverá ter início no dia 19 de outubro. Assim, uma série de eventos carregados de significado político e ideológico, além dos seus aspectos religiosos, prometem tornar este mês o mais difícil de 2005 para os americanos no Iraque. Somente o desaviso cultural e político permitiu tal concentração de elementos tão negativos em um só mês.
Isso explica as medidas tomadas pelo presidente Bush, aumentando as tropas no país – agora são 152 mil homens – contra todas as expectativas dos últimos dois meses (quando se falava em retiradas parciais). Da mesma forma, Bush ordenou poderosas ofensivas em áreas estratégicas do país, visando evitar um ataque surpresa da resistência durante os festejos do Ramadã. Desta forma, tropas novas e armamentos até aqui não utilizados, foram utilizados nas últimas três semanas nas províncias de Al-Anbar – fronteira com a Síria – e Nineweh – noroeste do país (ver mapa abaixo). Por fim, em discurso em Washington Bush advertiu que não há guerra sem sacrifícios e avisou que os próximos meses assistirão à intensificação da guerra no Iraque.
A situação militar
Nas últimas semanas de setembro, a violência – da coalizão e da insurgência – e o impasse político aumentaram exponencialmente. As operações militares da coalizão aumentaram de extensão e intensidade, da mesma forma que os ataques insurgentes e as baixas junto à população civil e das tropas da coalizão. Hoje, as tropas da coalizão operam em três grandes operações no Iraque, visando impedir uma larga ofensiva da resistência durante o mês do Ramadã. Sob o nome genérico de Operação Hunter, a coalizão manteve simultaneamente três grandes ofensivas:
– Ofensiva Iron Fist, nas províncias de Nineweh e Al-Anbar, com cerca de 1000 mariners do Regimental Combat Team-2;
– Ofensiva Aérea contra Husaybah, com a destruição de instalações da Al-Qaeda;
– Ofensiva Bawwabatu Annaher ou River Gate, com 350 tropas de segurança iraquianos e 2500 mariners do regimental Combat Team.
O objetivo central apresentado pelo comando da coalizão é “fechar o rio Eufrates” – acesso direto aos grandes núcleos demográficos do centro do país – aos insurgentes e “limpar” a área de abastecimento de água e energia em torno da cidade de Tal Afar, no norte do país. O conjunto de medidas de segurança visam, assim, garantir condições mínimas de segurança para as eleições do dia 15 de outubro e para o início do julgamento de Saddam Hussein em 19 de outubro, além de evitar um ataque surpresa da resistência sobre Bagdá.
A batalha de Tall Afar
A província de Ninawa, ou Nineweh (área histórica da civilização assíria, onde possuía sua capital, a cidade de Níneve) fica a 420 km ao norte de Bagdá e 60 km da fronteira da Síria. Em toda a província há uma forte presença de turcomenos – uma das etnias minoritárias do Iraque, falantes de turco, provenientes dos tempos em que o país era uma província do Império Turco Otomano (até 1919) e que continuaram residentes na região após a saída turca.
Toda a província de Nineweh fica numa área estratégica, de rápido acesso à fronteira síria e turca, além de uma ampla retaguarda montanhosa na fronteira com o país curdo. Na região de Tall Afar localiza-se um complexo de represas corretoras dos ritmos fluviais do Eufrates e geradoras de luz e força para uma ampla região circunvizinha.
Importantes áreas estratégicas curdas – como Erbil, a capital do Curdistão, e Mossul, além da riquíssima área petrolífera de Kirkuk – dependem da estabilidade em toda a região. Por fim, alguns pipelines cruzam a região em direção à Turquia, tendo sido atacados e postos fora de funcionamento, quase paralisando a economia petrolífera de todo o norte iraquiano.
Por outro lado, dadas as condições abertas das fronteiras, e conforme as informações americanas, um grande número de “terroristas”, de origem síria, sudanesa, yemenita e jordaniana, atravessavam constantemente a fronteira para juntar-se às tropas dos insurgentes, além de uma grande fluxo de armas. Assim, para os Estados Unidos, trata-se, acima de tudo – na Batalha de Tal Afar – de cortar as formas de abastecimento humano e de munições da resistência.
Com tais objetivos militares, desde maio de 2005 os Estados Unidos iniciaram operações locais, com bombardeios aéreos e ações localizadas, visando criar um diagnóstico da situação e avaliar as condições locais. Com o avanço da presença americana deram-se grandes combates em maio, sem alcançar o objetivo de securitizar a área. O grande fantasma a assombrar os americanos era a repetição da Batalha de Faluja (novembro/2004), na vizinha província de Al-Anbar, quando após semanas de combates e mais de mil mortos (a grande maioria civis), percebeu-se que a maior parte da resistência havia abandonado a região.
Quase imediatamente a resistência deu um violento assalto contra Mossul e iniciou-se o entrincheiramento em Tal Afar. Assim, na tentativa de evitar o “modelo Faluja”, os americanos iniciaram duas operações combinadas: de um lado, já em julho/2005, começaram a construção de um “muro de isolamento” em torno de Tal Afar, seguindo o modelo do que já havia sido feito na tentativa de securitizar Mossul. Trata-se de método desenvolvido pelos israelenses – que continuam com uma forte presença no Iraque, aconselhando os americanos em contra-terrorismo – e cujos resultados são altamente discutíveis.
Em segundo lugar, começaram uma operação de “esvaziamento” da cidade, com a retirada dos civis, visando isolar os resistentes e evitar o banho de sangue de Faluja. As reações locais foram bastante fortes. A população, de maioria sunita e etnia turca, mostrou-se contrária à presença americana e ajudou intensamente na saída de guerrilheiros. O próprio prefeito sunita da cidade, Muhammad Rashid, renunciou ao cargo em protesto contra a ação americana, enquanto as associações muçulmanas sunitas pressionavam o governo em Bagdá.
O uso de armas químicas
Para a operação principal contra Tal Afar, o comando militar da coalizão não ofereceu qualquer quantitativo das operações, não revelando nem o número de tropas americanas envolvidas. Foi divulgado pelo tenente general Rich Lynch que a maioria dos operações seriam conduzidas pela 3rd Iraq Army Division, com suporte norte-americano. O que se viu, entretanto, é menos humilde: houve desde o início da operação um ação direta de helicópteros, tropas e veículos blindados norte-americanos em combate direto. As ações principais foram deslanchadas a partir de 10 de setembro de 2005, com um forte impacto sobre o centro urbano de Tal Afar.
Após a ocupação da cidade, isolou-se um quarteirão residencial central – o bairro de Sarai, numa área densamente povoada, de 600x800m2 aproximadamente - e iniciou-se uma ação casa à casa, em cada rua do distrito urbano. No momento as informações apontam para cerca de 400 mortos entre os residentes, além de um número não estabelecido de vítimas nos arredores do centro urbano. A imprensa embebed, entretanto, nos fala de ações descoordenadas atingindo civis.
O mais grave, contudo, são as denúncias de uso de armas químicas em ataques aéreos contra a cidade por parte dos Estados Unidos, que negam o episódio. O jornal diário Birgün, de Istambul, que havia enviado correspondentes para a região da fronteira e entrevistou os refugiados que abandonavam em levas maciças Tal Afar, pôde noticiar os relatos dos sobreviventes dando conta do uso de armas químicas pela aviação americana. Segundo o jornalista Dogan Tilic, um dos sobreviventes pode narrar os acontecimentos: “(...) quando se deu o ataque aéreo, alguma coisa amarela caiu sobre a cidade, no lado onde ainda havia combates. Em seguida viu-se fumaça amarela e depois verde, com um odor enjoativo. Quando o ataque terminou e fomos ao local, encontramos uma centena de corpos literalmente carbonizados. Nos explicaram, depois, que as forças americanas haviam lançado bombas de napalm”.
Além do uso do napalm, o que mais uma vez aproxima a Guerra no Iraque da tragédia dos Estados Unidos no Vietnã (1964-1975), a utilização de tropas locais, de outra etnia – como os Peshmergas curdos – redundou em um grande massacre de turcomenos iraquianos: homens, mulheres e crianças foram assassinados, vários com armas brancas pelas tropas curdas que auxiliaram os Estados Unidos no avanço grande Tal Afar.
A triste ironia contida em tudo isso reside no fato de que a guerra começou com a acusação americana de ser o Iraque possuidor de armas químicas. O julgamento de Saddam Hussein, a começar na próxima semana, deverá acusá-lo de usar tais armas contra a população civil.
Violência excessiva, resultados pífios
Até o momento as forças americanas encontraram cerca de 18 “cachês” – esconderijos –, com armas e munições, dois túneis de fuga e uma grande fábrica de carros-bomba. Da mesma forma um vasto arsenal de armas foi apreendido, além de explosivos de fabricação doméstica (IUDs). Grande parte dos observadores locais afirmam que a maioria dos mortos – como em Faluja – são civis e que a resistência operou uma rápida retirada em direção à província de Al-Anbar. De qualquer forma, foram anunciados ataques simultâneos às cidades de Ramadi, Ar-Rawa, Al Qa’im e Samarra – todas na província de Al-Anbar – em evidente percepção por parte das autoridades americanas da capacidade de ramificação e de recuo tático das forças resistentes.
Dois novos pontos devem ser destacados a partir das lições da Batalha de Tal Afar: dá-se nitidamente, desde o final de 2004, uma nova fase na Guerra de Resistência no Iraque, com a ocupação permanente de território. A Batalha de Tal Afar, como foi Faluja em novembro de 2004, é um combate para reconquistar território. Assim, a guerrilha inicia uma ação de libertação de áreas especificas do país, escalando claramente os objetivos da guerra. Em segundo lugar, a resistência acentuou claramente suas ações terroristas nas grandes cidades iraquianas, em clara represália ao ataque contra Tal Afar.
Na última semana de setembro, em represália, uma nova organização da resistência armada – a Jaish al-Taefa al-Mansura, o Exército da Comunidade Vitoriosa – anunciou a próxima utilização de armas químicas contra o exército americano.
Ações em Tal Afar prosseguiram em grande escala. Em 24 de setembro foram transferidos para a região mais 700 paraquedistas da 82nd. Airborne Division, além de um número não declarado de tropas do 3rd Armored Cavalry Regiment. O resultado imediato de toda a ação – já com quatro semanas de duração – teria sido a redução de uma média de 100 ataques/semana para 50 ataques/semana na província de Nineweh. Ainda conforme o general Kevin Bergner, cerca de 80% das bases dos insurgentes teriam sido destruídas.
Contudo, em 28 de setembro, em Tal Afar, em um centro de alistamento de soldados e policiais – tradicional alvo da insurgência – uma mulher-bomba detonou os explosivos que carregava matando seis pessoas e ferindo outras 30 e, em 12 de outubro, na mesma Tal Afar, num ataque suicida contra um quartel iraquiano, ao menos 30 recrutas foram mortos. Assim, o imenso esforço de controle e imposição da Lei&Ordem em toda a região, com o uso excessivo da força e ensejando graves atentados aos direitos humanos, parecem amplamente comprometidos. Além disso os ataques terroristas em Bagdá intensificaram-se largamente, em represália às ações em Tal Afar/Nineweh.
É neste sentido – o horizonte de outubro agora, com o Ramadã + referendo + julgamento de Saddam Hussein – que se explica a fala do presidente Bush, em 28 de setembro, advertindo para chegada de “semanas duras no Iraque”. Da mesma forma, o ministro do Exterior, Hoshyar al-Zabari, de Bagdá, em viagem pela Europeu, advertiu, em 24 de setembro, que “os próximos três meses são críticos para o futuro do Iraque”.
Assim, após uma certa paralisia derivada das graves discussões em torno do Projeto Iraq 400 days and out – através do qual importantes estrategistas americanos exigiam um prazo de saída das tropas do país – e das críticas em decorrência do furacão Katrina, o governo Bush retorna a uma política de vitória militar no Iraque. Neste sentido, Rumsfeld e Rice, em discursos separados, insistiram na continuidade do conflito e na impossibilidade de abandonar o Iraque.
Outras autoridades, principalmente os militares, e entre eles o General George Casey, no comando local, descreveram, nos últimos dias, um cenário bastante ruim. Para Casey o Projeto da Constituição dividiu ainda mais o país, constituindo-se o referendo do dia 15 de outubro em imenso risco político-militar. Da mesma forma o poder de resistência autônoma do governo do Iraque mostrou-se frágil e incapaz de suportar um embate de grandes proporções. Após as operações de Tal Afar, os batalhões iraquianos em condições de combate caíram de 3 para 1, explicitando o fracasso da “formação do novo exército iraquiano”, tal qual aconteceu com o Exército da República do Vietnã (do sul), no final dos anos 60.
Rumsfeld havia anunciado que 194.000 iraquianos haviam sido treinados e postos em condições de combate. Entretanto, as batalhas em Nineweh e Al-Anbar desmentiram o “otimismo” do secretário de Estado. Enquanto isso, milhares de pessoas marcharam, na primeira semana de outubro, pelas ruas de Washington e Londres no sábado, marcando uma nova etapa, de massas, nos protestos contra a guerra.
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