Thierry Meyssan analisa aqui o sistema político e eleitoral dos Estados Unidos. Segundo ele, o único jogo verdadeiro da eleição presidencial é a manutenção no poder dos WASP, jamais contestada desde a Declaração de independência. Enquanto Ted Cruz e Hillary Clinton seriam os seus garantes, a candidatura de Donald Trump anuncia um solavanco profundo do sistema que só deveria acontecer quando os Anglo-Saxões ficassem em minoria na população em geral.
As primárias norte-americanas oferecem um espectáculo desolador, no decurso do qual os principais candidatos parecem não ter consciência que os seus julgamentos às três pancadas e as suas declarações demagógicas terão consequências, internas e externas, se eles forem eleitos como Presidente.
Apesar das aparências, a função presidencial apenas dispõe de poderes limitados. Assim, era claro para todos que o presidente George W. Bush não dispunha de capacidades de governação e que outros o faziam em seu lugar. Tal como, hoje em dia, é evidente que o presidente Barack Obama não consegue fazer-se obedecer pelo conjunto da sua administração. Por exemplo vê-se, no terreno, na Ucrânia e na Síria, que os homens do Pentágono travam uma guerra feroz com os da CIA. Na realidade, o principal poder da Casa-Branca não é o dirigir as forças armadas, mas, sim o de nomear ou de confirmar os 14. 000 altos-funcionários —dos quais 6. 000 logo aquando da entrada em funções do Presidente—. Para lá das aparências, a presidência é, pois, o garante da manutenção no poder da classe dirigente ; a razão pela qual é esta última, não o Povo, quem faz a eleição.
Lembremos que, segundo a Constituição (artigo 2, secção 1), o presidente dos Estados Unidos não é eleito por sufrágio universal em segundo grau, como o pretendem os média (mídia-br) ignorantes, mas apenas pelos 538 representantes dos Governadores. A Constituição não obriga os Governadores a designar Eleitores correspondendo ao desejo expresso pelos administrados durante o escrutínio consultivo que o precede. Assim, em 2000 o Supremo Tribunal dos Estados Unidos recusou invalidar os Eleitores designados pelo governador da Florida, na precisa altura em que existia uma dúvida sobre a vontade expressa pelos eleitores desse Estado.
Recordemos igualmente que as «primárias» não são organizadas pelos partidos políticos como na Europa, mas pelos Estados —sob a responsabilidade dos Governadores—, cada um segundo o seu próprio sistema. As primárias são concebidas de modo a que, in fine (em última análise), cada um dos grandes partidos apresente um candidato à função presidencial que seja compatível com os interesses dos Governadores. Elas são, pois, organizadas segundo o modelo do «centralismo democrático» soviético, afim de eliminar qualquer indivíduo que tenha um pensamento original ou simplesmente susceptível de pôr em causa o sistema, em proveito de uma personalidade «consensual». Nos casos em que os cidadãos participantes não conseguissem designar um candidato, ou, sobretudo, se eles conseguissem designar para tal um mas que este fosse incompatível para com o sistema, a Convenção do partido que se seguirá decidirá, se necessário, invertendo o sentido da votação dos cidadãos.
As primárias dos E.U. não são pois um «momento democrático», mas, muito pelo contrário, um processo que, de um lado permite aos cidadãos exprimirem-se, e por um outro lhes ordenou renunciar aos seus interesses e às suas ideias para se alinharem atrás de uma candidatura conforme ao sistema.
Em 2002, Robert A. Dahle, Professor de Direito Constitucional na Universidade de Yale, publicava um estudo sobre a maneira como a Constituição fora escrita em 1787, afim de se assegurar que jamais os Estados Unidos seriam uma verdadeira democracia [1]
. Mais recentemente, em 2014, dois professores de Ciência Política Martin Gilens em Princeton e Benjamin I. Page na Northwestern, mostraram que o sistema evoluiu de maneira a que, hoje em dia, todas as leis são aprovadas a pedido e sob o contrôlo de uma elite económica, sem que alguém jamais leve em consideração as opiniões da população [2].
A presidência de Barack Obama foi marcada pela crise financeira, depois económica, em 2008, cuja principal consequência é o fim do contrato social. Até aqui, o que unia os Norte-americanos era o «sonho americano», a ideia que qualquer um podia escapar da miséria e tornar-se rico graças ao fruto do seu trabalho. Podia admitir-se toda a espécie de injustiças provendo que haja a esperança de «se safar» (se virar-br). Agora, com a excepção dos «super-ricos» que não param de enriquecer, o melhor que se pode esperar é de não decair.
O fim do «sonho americano» suscitou primeiro a criação de movimentos de raiva, à direita o Tea Party, em 2009, e à esquerda o Ocuppy Wall Street, em 2011. A ideia geral era que o sistema inigualitário não era mais aceitável, não porque ele se tinha aprofundado, mas porque se tornara fixo e permanente. Os apoiantes do Tea Party afirmavam que para que a coisa ficasse melhor, seria preciso diminuir os impostos e safar-se por si próprios mais do que estar à espera de uma protecção social; enquanto os do Occupy Wall Street pensavam que seria preciso, pelo contrário, taxar os super-ricos e redistribuir o que se lhes teria tirado. No entanto, esta etapa foi ultrapassada, em 2015, com Donald Trump, um bilionário que não põe em causa o sistema, mas pretende ter beneficiado do «sonho americano» e poder relançá-lo. Em todo o caso, é assim que os cidadãos têm captado o seu slogan «America great again!»(América grande de novo!). Os seus apoiantes não pretendem apertar o cinto, um pouco mais, para financiar o complexo militar-industrial, e relançar o imperialismo, esperam sim que lhes permita, por sua vez, enriquecer como o fizeram várias gerações de Norte-americanos antes deles.
Enquanto o Tea Party e Occupy Wall Street legitimaram, respectivamente, as candidaturas de Ted Cruz entre Republicanos e de Bernie Sanders entre os Democratas, a candidatura de Donald Trump ameaça as posições adquiridas daqueles que se protegeram durante a crise financeira de 2008, bloqueando por isso o sistema. Ele não parece, pois, contrário aos super-ricos, mas, sim aos altos-funcionários e aos profissionais da política, a todos os «privilegiados do sistema», que têm grandes rendimentos sem jamais assumir riscos pessoais. Se quisermos comparar Trump com personalidades europeias, não será nem com Jean-Marie Le Pen ou com Jörg Haider, mas com Bernard Tapie e com Silvio Berlusconi.
Como vão os Governadores reagir ?
Quem vão eles fazer eleger Presidente ?
Até aqui, a «aristocracia» US –-de acordo com a expressão de Alexander Hamilton--- era composta exclusivamente por WASP, isto é White Anglo-Saxons Protestants (Brancos, Anglo-Saxões, Protestantes) [No início o «P» significava «puritanos», mas com o tempo o conceito alargou para todos os «protestantes»]. No entanto, uma primeira excepção teve lugar em 1961, com o católico irlandês John Kennedy, o que permitiu resolver pacificamente o problema da segregação racial. E uma segunda em 2008, com o queniano negro Barack Obama, o que permitiu dar a ilusão de integração racial. Seja como for, em nenhum destes dois casos, o eleito usou o seu poder para renovar a casta dominante. Nenhum, nunca, apesar da promessa de desarmamento geral quanto ao primeiro, e de desarmamento nuclear pelo segundo, pôde empreender o que quer que fosse contra o complexo militar-industrial. É verdade que nos dois casos, lhes haviam imposto um dos seus representantes como vice-presidente, Lyndon B. Johnson e Joe Biden; uma medida de substituição que foi activada no caso de Kennedy.
Donald Trump, quanto a ele, incarna pelo discurso franco um populismo feito ao contrário das formas convencionais do «politicamente correcto», caro aos WASP. Claramente, a fria aproximação entre o presidente da National Governors Association (Associação Nacional de Governadores), o Governador do Utah, Gary Herbert, e Donald Trump mostra que um acordo entre ele e a casta dominante será muito difícil de conseguir.
Restam duas outras opções: Hillary Clinton e Ted Cruz. Este último é um hispânico tornado intelectualmente um WASP, após a sua «conversão» ao protestantismo evangélico. A sua designação permitiria realizar uma operação comparável à da eleição de Obama, desta vez manifestando uma vontade de integrar «Latinos», depois de ter seduzido os «negros». Infelizmente, muito embora tenha sido lançado por uma empresa trabalhando tanto para a CIA como para o Pentágono, é um personagem completamente artificial que iria ter problemas em assumir o traje. Resta a advogada feminista Hillary Clinton, cuja eleição permitiria mostrar uma vontade de integração das mulheres. Mas, o seu comportamento irracional e as suas crises de fúria histérica não deixam de levantar inquietações. Além disso, está na mira de um grave inquérito judicial, o que permite exercer sobre ela chantagem e, portanto, controlá-la.
Em nenhum momento desta análise eu evoquei os programas dos candidatos. É que, na realidade, na filosofia política local isso não conta. Desde a «Commonwealth» de Oliver Cromwell, o pensamento político anglo-saxónico considera a noção de interesse geral como uma impostura visando mascarar intenções ditatoriais. Os candidatos não têm, pois, programas para o seu país, mas «posições» sobre temas específicos, que lhes permitem obter «apoios». Os eleitos —o presidente, os deputados, os governadores, os procuradores(promotores-br), os xerifes(delegados-br), etc.— não pretendem servir o Bem Comum, mas, sim satisfazer o maior número possível dos seus eleitores. Durante um comício eleitoral, um candidato não apresentará nunca a sua «visão do mundo», mostrará, sim, a lista de apoios de que já dispõe para convidar outras «comunidades» a confiar-lhe a sua defesa. É a razão pela qual, a traição política nos Estados Unidos não é mudar de partido, mas agir contra os interesses supostos da comunidade.
A originalidade desta concepção é que os políticos não são obrigados a mostrar coerência no seu discurso, mas, sim apenas para os interesses que eles defendem. Por exemplo, pode-se afirmar que os fetos são seres humanos e condenar o aborto em nome da protecção da vida humana, depois, na frase seguinte, pregar a exemplaridade da pena de morte.
Não haveria grande diferença entre a política que poderia seguir o evangelista Ted Cruz, a feminista Hillary Clinton ou marxista Bernie Sanders. Todos eles, os três, deveriam seguir os passos já traçados por George W. Bush e Barack Obama. Ted Cruz evoca a Bíblia —de facto os valores judaicos do Antigo Testamento— e fala para um eleitorado religioso do retorno aos valores fundamentais dos «pais fundadores». O desbloqueamento do sistema seria, portanto, questão de moral pessoal, sendo suposto o dinheiro ser «um dom de Deus aqueles que lhe são tementes». Por seu lado Hillary Clinton conduz uma campanha dirigida às mulheres, e considera como adquirido o voto daqueles que ficaram ricos sob a presidência do seu marido. Para eles, o desbloqueamento do sistema seria pois um assunto de família. Enquanto Bernie Sanders denuncia a captura da riqueza por 1% da população, e apela à sua redistribuição. O seus apoiantes sonham com uma revolução, da qual eles beneficiariam, sem ter que a fazer.
Só a eleição de Donald Trump poderia marcar uma mudança no sistema. Contrariamente às suas declarações, ele é o único candidato racional, porque não é um homem político, mas um homem de negócios, um dealmaker. Ele ignora todos os assuntos que deveria abordar, e não tem nenhum a priori. Ele contentar-se-ia em tomar decisões à medida das alianças que estabelecesse. Para o melhor ou para o pior.
Estranhamente, os Estados onde Bernie Sanders ganhou são quase os mesmos que os de Ted Cruz, enquanto os de Donald Trump incluem quase todos os de Hilllary Clinton. É que, inconscientemente, os cidadãos apreendem o seu futuro quer através da moral que permite a redenção e depois o enriquecimento (Sanders e Cruz), quer através do trabalho e do êxito material que seria preciso procurar (Trump e Clinton) .
Nesta altura, é impossível predizer qual será o próximo presidente, e se isso terá ou não qualquer importância. Mas, por inevitáveis razões demográficas este sistema vai afundar-se, por si próprio, nos próximos anos, uma vez os Anglo-saxões tornando-se uma minoria.
[1] How Democratic is the American Constitution? («Quão Democrática é a Constituição Americana»- ndT), Robert A. Dahl, Yale University Press, 2002.
[2] «Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens» («Testando Teorias da Política Americana : Elites, Grupos de Interesse, e Cidadãos Comuns»- ndT), Martin Gilens and Benjamin I. Page, Perspectives on Politics, Volume 12, Issue 03, September 2014, pp. 564-581.
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