A Aliança Atlântica exalta a Ucrânia por ocasião do primeiro aniversário da intervenção militar russa no seu território. Em frente aos olhos, vê-mo-la recorrer à mais enganadora das propagandas, articulando com habilidade a omissão e por vezes a mentira. Contrariamente ao que afirma, esta guerra jamais foi ilegal, mesmo se hoje ela não parece já necessária e devendo ser interrompida. No entanto, as causas da guerra permanecem e o Kremlin antecipa uma segunda parte, não para anexar a Ucrânia ou a Moldávia, mas para salvar a Transnístria.
O primeiro aniversário do confronto militar Leste-Oeste na Ucrânia foi a ocasião para os Ocidentais de convencer as populações que estão « do lado certo da História » e que a sua vitória é « inevitável ».
Nada disto é surpreendente. É normal que os governos comuniquem sobre as suas actividades. Só que aqui informação são mentiras, por omissão, e os comentários nada mais que propaganda. Assistimos a uma tal deformação da realidade que podemos nos interrogar se, em última análise, os vencidos da Segunda Guerra Mundial não acabaram por chegar hoje ao Poder em Kiev.
« A guerra ilegal, injustificável e não-provocada da Rússia »
Todas as intervenções ocidentais matraqueiam que condenamos « a guerra ilegal, injustificável e não-provocada da Rússia » [1]. O que é factualmente falso.
Deixemos de lado a qualificação de «injustificável». Ela remete para um posicionamento moral indecente. Nenhuma guerra é justa. Toda a guerra é a constatação, não de uma falha, mas de um fracasso. Examinemos o qualificativo de « não-provocada ».
Segundo a diplomacia russa, o problema começou com a operação americano-canadiana de 2014 e o derrube do Presidente ucraniano democraticamente eleito, Viktor Ianukovych, em violação da soberania ucraniana e, portanto, da Carta das Nações Unidas. Não é possível negar que Washington jogou um papel determinante nessa pretensa « revolução da dignidade » : a Secretária de Estado adjunta para Europa e Euroásia da época, Victoria Nuland, mostrou-se à cabeça dos golpistas.
Segundo a diplomacia chinesa, que acaba de publicar dois documentos a este respeito, não devemos ficar por esta operação, mas voltar à « revolução laranja » de 2004, igualmente organizada pelos Estados Unidos, para constatar a primeira violação da soberania ucraniana e da Carta das Nações Unidas. É evidente que se a Rússia não a menciona é porque também ela jogou aí um papel, o que não fez em 2014.
O público ocidental está de tal modo aparvalhado com a facilidade com que os Estados Unidos manipulam multidões e derrubam governos que já não toma consciência da gravidade destes factos. Desde o derrube de Mohammad Mossadegh, no Irão (Irã-br) em 1953, até ao de Serge Sarkissian, na Arménia em 2018, ele habituou-se às mudanças forçadas de regime. Se os governantes caídos eram bons ou maus não entra em linha de conta. Aquilo que é insuportável e inadmissível é que um Estado estrangeiro tenha organizado esses derrubes mascarando a acção por trás de alguns opositores nacionais. Isto corresponde a actos de guerra sem uma intervenção militar.
Os factos impõem-se. A guerra na Ucrânia foi provocada pelas violações da soberania ucraniana em 2004 e de 2014. Estas violações foram seguidas de uma guerra civil de oito anos.
A guerra também não é ilegal face ao Direito Internacional. A Carta das Nações Unidas não interdita o recurso à guerra. O Conselho de Segurança tem mesmo a possibilidade de a declarar (Artigos 39 a 51). A particularidade desta vez é que ela opõe membros permanentes do Conselho.
A Rússia assinou em conjunto os Acordos de Minsk para por fim à guerra civil. Porém, por não ter nascido ontem, desde o início ela percebeu que os Ocidentais não queriam a paz, mas, sim a guerra. Deste modo, ela fez com que os Acordos de Minsk fossem avalizados pela Resolução 2202 do Conselho de Segurança, cinco dias após a sua conclusão, depois forçou o oligarca russo Konstantin Malofeïev a retirar os seus homens do Donbass ucraniano. Em anexo à Resolução, ela conseguiu juntar uma Declaração dos Presidentes da França, Ucrânia e da Rússia, assim como da Chancelerina alemã, assumindo-se como garantes da aplicação destes textos. Estes quatro signatários comprometiam assim os seus países.
• O Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, declarou nos dias seguintes que estava fora de questão ceder fosse o que fosse, mas, pelo contrário, que ia punir os habitantes de Donbass.
• A antiga Chancelerina Angela Merkel declarou à Die Zeit [2] que unicamente queria ganhar tempo a fim de que a OTAN pudesse armar as autoridades Kiev.
Ela precisou a sua declaração sem querer numa conversa com um imitador-provocador que julgou ser o antigo Presidente Poroshenko.
• O antigo Presidente François Hollande confirmou ao Kyiv Independent as declarações da Sra Merkel [3].
• Resta a Rússia, que lançou uma “operação militar especial”, em 24 de Fevereiro de 2022, em virtude da sua « responsabilidade de proteger ». Dizer que a sua intervenção é ilegal é o mesmo que dizer, por exemplo, que a da França durante o genocídio no Ruanda também foi também ilegal e que se deveria ter deixado o massacre prosseguir.
Os e-correios (“e-mails”) do conselheiro especial do Presidente russo, Vladimir Putin, Vladislav Surkov, que acabam de ser revelados pela parte ucraniana, não fazem mais do que confirmar esse processo. Durante os anos que se seguiram, a Rússia ajudou as Repúblicas ucranianas de Donbass a se preparar intelectualmente para a independência. Esta ingerência era ilegal. Ela respondia à ingerência, igualmente ilegal, dos Estados Unidos, que armavam não a Ucrânia, mas os « nacionalistas integralistas » ucranianos. A guerra já começara, mas dirigida exclusivamente por Ucranianos. Ela provocou 20. 000 mortos em 8 anos. Os Ocidentais e a Rússia intervinham apenas indirectamente.
É preciso compreender que, ao fingir negociar a paz, Angela Merkel e François Hollande cometeram o pior dos crimes. Com efeito, segundo o Tribunal de Nuremberga, os « crimes contra a paz » são mais graves ainda do que aqueles « contra a humanidade ». Eles não são a causa deste ou daquele massacre, mas da guerra em si mesma. É por isso que o Presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, pediu a convocação de um novo Tribunal de Nuremberga para julgar Angela Merkel e François Hollande [4]. Este apelo, que nos mostra o abismo que separa as duas percepções do conflito, não foi noticiado pela imprensa ocidental.
A ordenança do Tribunal de Justiça Internacional de 16 de Março de 2022 declarou, como precaução, que « a Federação da Rússia deve suspender imediatamente as operações militares que ela começou em 24 de Fevereiro de 2022 no território da Ucrânia » ( ref: A/77 /4, parágrafos 189-197). Moscovo não obedeceu, considerando que o Tribunal havia sido questionado sobre a exigência de um genocídio perpetrado por Kiev contra a sua própria população e não sobre a operação militar visando proteger a população ucraniana.
Por seu lado, a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou várias Resoluções, a última das quais sendo a A/ES-11/L.7, de 23 de Fevereiro de 2023. O texto « Exige de novo que a Federação da Rússia retire imediatamente, de forma completa e sem condições todas as suas forças militares do território ucraniano, para o interior das fronteiras internacionalmente reconhecidas do país e apela à cessação das hostilidades ».
Nenhum destes dois textos declara a intervenção russa « ilegal ». Eles ordenam ou exigem que o Exército russo se retire. Em 193 Estados, 141 consideram que a Rússia deve cessar a sua intervenção. Alguns deles acham que ela é ilegal, mas a maior parte acha que ela « já não é necessária » e causa sofrimento inutilmente. O que não de todo a mesma coisa.
Os Estados têm um ponto de vista diferente dos juristas. O Direito Internacional apenas pode sancionar aquilo que existe. Mas, os Estados devem proteger os seus cidadãos de conflitos em formação, antes que seja tarde demais para lhes responder. É por isso que o Kremlin não obedeceu à Assembleia Geral das Nações Unidas. Não se retirou do campo de batalha. Com efeito, ele viu durante oito anos a OTAN armar a Ucrânia e preparar esta guerra. Ele sabe, pois, que o Pentágono prepara uma segundo acção na Transnístria [5] e que deve proteger a sua população desta segunda operação. Da mesma forma como escolheu a data da sua intervenção na Ucrânia, a partir de informações indicando um ataque iminente de Kiev ao Donbass, o que só foi confirmado posteriormente [6], da mesma forma ele decide hoje libertar toda a Novorossia, Odessa incluída. O que é juridicamente inaceitável, até que a prova das manigâncias ocidentais seja revelada, mas sendo de um ponto de vista da sua responsabilidade já necessária.
Manifestamente, estas duas maneiras de pensar não escaparam aos observadores. O facto de julgar que a intervenção russa já não é necessária deve ser distinguido daquele de apoiar o Ocidente. É por isso que apenas 39 dos 191 Estados estão a participar nas sanções ocidentais e a enviar armas para a Ucrânia.
A Ucrânia é uma « democracia »
A segunda mensagem dos dirigentes ocidentais é que a Ucrânia seria uma « democracia ». Para além do facto de que esta palavra já não tem nenhum sentido num momento em que as classes médias desaparecem e as disparidades de rendimento se tornaram maiores do que em qualquer outro momento da história da humanidade, afastando-se do ideal igualitário, a Ucrânia é tudo menos uma «democracia».
A sua Constituição é a única no mundo que é racista. Ela postula, no seu Artigo 16, que « Preservar o património genético do povo ucraniano é da responsabilidade do Estado » ; uma passagem redigida por Slava Stetsko, a viúva do Primeiro-Ministro nazi ucraniano.
Este é o assunto que provoca. Pelo menos desde 1994, os « nacionalistas integralistas » (não confundir com os simples «nacionalistas»), quer dizer, as pessoas que se reivindicam da ideologia de Dmytro Dontsov e da actuação de Stepan Bandera , exercem altas funções no Estado ucraniano [7]. De facto, esta ideologia radicalizou-se com o tempo. Ela não tinha o mesmo sentido durante a Primeira Guerra Mundial que durante a Segunda. O que é certo é que Dmytro Dontsov foi, a partir de 1942, um dos mentores da « solução final das questões judaicas e ciganas ». Ele foi administrador do órgão do IIIº Reich encarregue de assassinar milhões de pessoas devido à sua origem étnica, o Instituto Reinhard Heydrich de Praga. Stepan Bandera, esse, foi o chefe militar dos nazis ucranianos. Ele ordenou inúmeros pogroms e massacres em massa. Contrariamente ao que afirmam os seus actuais sucessores, ele jamais foi internado num campo de concentração, mas, sim colocado em prisão domiciliar nos subúrbios de Berlim, na sede da administração dos campos de concentração. Aliás, ele terminou a guerra dirigindo as tropas ucranianas sob as ordens directas do Führer Adolf Hitler.
Um ano após o início da intervenção militar russa, símbolos nacionalistas integralistas ou nazis são visíveis por toda a parte na Ucrânia. O jornalista da Forward, Lev Golinkin, que iniciou um inventário de todos os monumentos em memória dos criminosos implicados nos crimes nazis, em todo o mundo, compilou uma lista impressionante dos monumentos desse tipo na Ucrânia [8]. Segundo ele, são quase todos posteriores ao Golpe de Estado de 2014. É preciso, pois, admitir que as autoridades saídas do Golpe de Estado se reclamam precisamente do « nacionalismo integralista », não do « nacionalismo » simplesmente. E para aqueles que duvidam que o Presidente judaico Zelensky glorifica os nazis, há duas semanas ele atribuiu o « título de honra Edelweiss » à 10° brigada de assalto de montanha separada, em referência à 1ª divisão de montanha nazi que « libertou » (sic) Kiev, Stalino, as passagens do Dniepr e de Kharkov [9].
Raras foram as personalidades ocidentais que aquiesceram com as declarações a este propósito do Presidente Vladimir Putin e as do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores-br), Serguei Lavrov [10]. No entanto, o Primeiro-Ministro israelita Naftali Bennett, e o seu Ministro da Defesa, o General Benny Gantz, declararam várias vezes que a Ucrânia devia se submeter às injunções de Moscovo pelo menos neste ponto : Kiev deve destruir todos os símbolos nazis que exibe. É por Kiev se recusar a fazê-lo que Israel não lhe fornece armas : nenhuma arma israelita será remetida aos sucessores dos assassinos dos judeus. Esta posição pode evidentemente evoluir com o governo de coligação de Benjamin Netanyahu; ele próprio herdeiro dos « sionistas revisionistas » de Vladimir Jabotinsky, os quais fizeram aliança com os « nacionalistas integralistas » contra os Soviéticos.
A política actual do Governo de Volodymyr Zelensky é incompreensível. Por um lado, as instituições democráticas “funcionam”, por outro, não somente se celebra em todo o lado os nacionalistas integralistas, mas se proíbe os Partidos políticos da oposição e a Igreja Ortodoxa sob o Patriarcado de Moscovo; destruíu-se milhões de livros porque foram escritos ou impressos na Rússia; declarou-se 6 milhões de Ucranianos como « colaboradores do invasor russo » e assassina-se as personalidades que os apoiam.
[1] Ver por exemplo : “Statement by G7 leaders on the first anniversary of the invasion of Ukraine”, Voltaire Network, 24 February 2023.
[2] "Hatten Sie gedacht, ich komme mit Pferdeschwanz?", Tina Hildebrandt und Giovanni di Lorenzo, Die Zeit, 7. Dezember 2022.
[3] «Hollande: ‘There will only be a way out of the conflict when Russia fails on the ground’», Theo Prouvost, Kyiv Independent, December 28, 2022.
[4] «Володин призвал рассмотреть на трибунале признания Меркель, Олланда и руководства Украины», Tass, 18 января 2023.
[5] “A derrota da Ucrânia não significa o fim da guerra”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 21 de Fevereiro de 2023.
[6] Plan ukrainien d’attaque du Donbass, documento capturado pelo Exército russo. É de notar bem que ele foi publicado antes do Tribunal Internacional de Justiça ter dado a sua ordenança. Ele não o examinou porque a Rússia, segura da sua posição legal, não apresentou queixa.
[7] “Quem são os nacionalistas integralistas ucranianos ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 17 de Novembro de 2022.
[8] «Nazi collaborator monuments in Ukraine», Lev Golinkin, Foward, January 27, 2021. Versão francesa : «Monuments aux collaborateurs nazis en Ukraine», Lev Golinkin, Tribune juive, 23 février 2023.
[9] « Le neuvième anniversaire de la guerre en Ukraine », par Manlio Dinucci, Traduction M.-A., Réseau Voltaire, 27 février 2023.
[10] “Lavrov desafia a definição comunitária de anti-semitismo”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 9 de Maio de 2022.
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