Em preparação para a Cúpula Mundial que acontece em novembro, na Tunísia, governos latino-americanos e caribenhos aprovaram uma declaração de princípios e um plano de ações para a região. ONGs cobrarão compromisso assinado pelos países com mobilização de base
Terminou nesta sexta-feira (10) a Conferência Regional Ministerial de América Latina e Caribe, preparatória para a segunda fase da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação - que acontece em novembro, na Tunísia.
Do encontro no Rio de Janeiro, saíram dois documentos considerados positivos pelas organizações da sociedade civil que acompanharam a conferência como observadoras. O primeiro, intitulado “Compromisso do Rio”, é uma declaração política regional voltada para o desenvolvimento sustentável, a inclusão social e a solidariedade na América Latina e Caribe.
Apresenta o entendimento comum dos países da região sobre temas como inclusão digital, modelo de licenciamento de software e gestão da internet. O documento afirma, por exemplo, a importância de um sistema internacional de governança da internet baseado na transparência, na democracia e no multilateralismo, criticando o atual modelo de gestão da rede mundial de computadores, centralizado nos Estados Unidos.
“Nós e algumas empresas trabalhamos para que a internet seja reconhecida como um bem público, como algo estratégico para o desenvolvimento dos países e da humanidade para se avançar rumo à sociedade do conhecimento. É preciso, portanto, que esse bem público tenha um controle multilateral, feito por um organismo internacional, que tenha transparência e seja democrático. Hoje a internet é regulada pelo Icann, uma entidade que está sob um contrato do Departamento de Estado de Comércio norte-americano. Isso foi denunciado antes de Genebra [primeira fase da Cúpula] e gerou uma grande discussão que até hoje está aberta”, explica Paulo Henrique Lima, diretor executivo da Rits (Rede de Informações para o Terceiro Setor).
“No grupo de trabalho criado pela ONU para debater a questão da governança na internet, o representante da sociedade civil [o brasileiro Carlos Afonso] vem defendendo bastante a necessidade de transparência e de democratização”, ressalta. O informe deste grupo de trabalho será apresentado em julho e levado para a discussão na Tunísia, mas o Compromisso do Rio já reforçou a importância de adoção de um outro modelo para a gestão da internet.
O segundo documento aprovado na conferência - o eLAC 2007 - é um plano de ação regional, com iniciativas, atividades concretas e metas que devem ser implementadas em cada um dos países nos próximos dois anos com vistas à construção de uma sociedade da informação mais justa e igualitária. Na opinião das ONGs que participaram da reunião, o eLAC minimamente abriu espaço para uma participação mais democrática e inclusão dos cidadãos no setor.
Entre as metas acordadas pelos governos estão o crescimento da alfabetização digital - ou seja, o acesso às tecnologias de informação e comunicação (TICs) - em pelo menos 2,5% da população a cada ano; levar internet a pelo menos um terço das escolas públicas e bibliotecas e dobrar o número de telecentros - ou garantir um centro de acesso comunitário para cada 20 mil pessoas - até 2007.
Os dois documentos são contribuições da conferência regional para a Declaração de Princípios e o Plano de Ação que serão firmados as segunda fase da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI). No entanto, sua existência não está vinculada nenhum sucesso neste sentido na Tunísia; ou seja, nada garante que o que foi debatido no Rio influencie decididamente a construção da próxima fase da CMSI.
Primeiro, porque a declaração política dos governos já foi assinada na primeira fase, que aconteceu em Genebra, no final de 2003. Segundo, porque, para o plano de ação que será fechado na Tunísia, o peso dos países da União Européia e dos Estados Unidos é muito maior do que dos latino-americanos e caribenhos.
“É claro que buscamos, em espaços como este, radicalizar nossas posições e aumentar seu impacto no cenário internacional. Mas esse equilíbrio é difícil num evento assim. Mesmo com a presença de alguns países africanos, o peso de uma reunião da América Latina e Caribe é menor nas Nações Unidas. Então o exercício mais promissor que se faz aqui é conseguir alguns pactos latino-americanos e colocar essas questões na agenda da região. Como tentativa no combate em bloco à chamada “brecha digital”, é uma iniciativa que pode ter resultados”, acredita Lima.
Ele cita o exemplo do software livre, cujo uso e adoção foram citados no eLAC 2007, o que permite, ao menos, “reabrir a ferida” para este debate nas negociações internacionais. As organizações da sociedade civil também comemoraram avanços obtidos regionalmente em questões há tempos reivindicadas pelas entidades, como a promoção de telecentros, de veículos comunitários e de mecanismos de inclusão digital.
Novos ares
Mesmo sem garantia de um impacto internacional na segunda fase da CMSI, a conferência regional do Rio foi tida como um espaço positivo pela sociedade civil porque abriu o leque das discussões e não debateu a informação e a comunicação somente de um ponto de vista técnico. Para Nestor Busso, da Associação Latino-americana de Educação Radiofônica (Aler), que integrou a delegação oficial da Argentina, um dos perigos em todo o processo da Cúpula é falar somente de tecnologias.
“A comunicação é um tema que os que controlam a comunicação não querem colocar em debate público. Evidentemente falta avançar muito para democratizar os meios e para que todas as pessoas possam exercer seu direito à informação, à liberdade de expressão, à comunicação. Mas esta conferência tocou em temas políticos para mudar esta situação estrutural. Reconheceu, por exemplo, que a brecha digital não é uma questão tecnológica, e sim causa e conseqüência das brechas estruturais e sociais, como a pobreza, a injusta distribuição da riqueza, a falta de educação. De alguma maneira, os governos da América Latina reconhecem isso e estão buscando mecanismos para superar essas questões -, dentro, claro, das limitações de um sistema democrático ainda muito condicionado ao poder econômico, como existe hoje na América Latina”, analisa Busso.
Na avaliação da sociedade civil, parte desta mudança se deve a transformações que estão acontecendo no interior dos governos latino-americanos. Pelo menos seis países contaram com representantes de ONGs em suas delegações oficiais, e outros se mostraram relativamente abertos a conversas com os movimentos. Isso levou a mudanças sobretudo no discurso de países como Argentina, Uruguai, Brasil e Venezuela. Há ainda, claro, os conhecidos “fundamentalistas do mercado”, representados nesta reunião por países como El Salvador, Honduras, México e Chile, além da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), das Nações Unidas. A Cepal, que chegou tardiamente às discussões da CMSI, vem mostrando posições de defesa ao fortalecimento das empresas e à lógica do capital. Isso vem dificultando a interlocução mesmo entre países democráticos e sua sociedade civil, em contraposição a um aumento da força do setor privado.
“Houve muita tensão para se chegar a acordos, por exemplo, sobre os meios comunitários. Houve posicionamentos que levantariam da tumba o próprio Adam Smith”, ironizou o paraguaio Arturo Enzo Bregaglio, da FM Trinidad, de Asunción. “Se dissessem para ele que algumas delegações aqui nesta reunião, como a de El Salvador e Guatemala, se negaram a afirmar conceitos como “igualdade de oportunidades” e se irritaram com palavras como “meios comunitários” e “sociedade civil”... Estamos falando, nesses casos, de falta de razão no debate político. E um debate chega a este ponto, sem nenhum fundamento, quando esses setores já não encontram outras formas de defender as idéias”, acredita Bregaglio.
O que as entidades que vieram ao Rio pretendem fazer agora na volta para seus países é cobrar que seus respectivos governos, a partir da promoção de debates com a população, coloquem em prática os compromissos assinados na conferência. “O pior que pode acontecer é não falarmos disso, porque os grupos econômicos avançam com seus objetivos - que é fazer negócios - e nós temos que colocar em pauta discussões que tratam a comunicação não simplesmente como um negócio, mas como um direito humano. Portanto, temos que buscar formas de fortalecer este direito, exercendo-o na prática. Precisamos debater que rádio queremos, que TV e que internet queremos, como e em que condições de acesso, como usar os recursos em produções que fortaleçam nossas identidades, culturas e idiomas”, diz Busso.
“Não acredito muito nessas instâncias de conferências internacionais. Temos que participar desses espaços e tentar avançar, mas as mudanças não se produzem aqui. Elas se constroem com mobilização de base. A delegação uruguaia mudou de postura porque o povo uruguaio mudou e votou em outra coisa. Eu hoje sou parte da delegação oficial da Argentina porque as rádios comunitárias são uma realidade no meu país. É para mudar esta realidade que precisamos trabalhar agora”, conclui.
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