Na última sexta-feira (16), terminou em Nova York aquela que era para ter sido uma das mais importantes Cúpulas Mundiais das Nações Unidas. Realizada ao mesmo tempo que o início da 60a Sessão da Assembléia Geral da ONU, que marca o aniversário de seis décadas da organização. A cúpula reuniu chefes de Estado, de governos e monarcas para, além de avaliar os cinco primeiros anos do programa Metas do Milênio, debater com profundidade uma agenda de reforma da ONU.

A avaliação de quem acompanhou de perto os debates foi a de que os resultados da Cúpula ficaram aquém do esperado. Os países ricos reafirmaram seu compromisso com a redução da pobreza e com a Metas do Milênio, sem, no entanto, dizerem como pretendem fazer isso; a ampliação do Conselho de Segurança também não saiu das boas intenções, assim como a criação de um regime internacional de controle da proliferação nuclear.

No campo dos direitos humanos, a comemoração em função de prováveis avanços ainda segue em suspenso. Um passo importante foi dado: a Cúpula aprovou a responsabilidade da ONU em agir para impedir genocídios em qualquer parte do mundo. Também aprovou o plano de ação proposto pelo Alto Comissariado para Direitos Humanos, com a previsão de uma duplicação de seu orçamento em cinco anos. Por fim, criou um Conselho de Direitos Humanos, para a substituir a atual Comissão de Direitos Humanos da organização, que vinha perdendo credibilidade por se mostrar seletiva e politizada ao extremo.

Todos os anos, a comissão analisa e define medidas de proteção e promoção dos direitos humanos e também de punição às violações cometidas em todo o mundo. A idéia é que, com a criação deste Conselho, os direitos humanos tenham dentro da instituição o mesmo peso que a questão da segurança e do desenvolvimento – debatidas no âmbito do Conselho de Segurança e do Conselho Econômico e Social (Ecosoc), ao qual até agora estava subordinada a comissão.

“O problema é que o documento final da reunião prevê a criação do Conselho de Direitos Humanos sem estabelecer nenhuma de suas características. Isso vai ser debatido daqui pra frente. No entanto, isso gera uma preocupação, porque, por exemplo, nos quase 700 pedidos de emenda que os Estados Unidos fizeram à proposta inicial de reforma geral da ONU, estava incluída a idéia de que só poderiam compor o conselho os países que respeitassem os direitos humanos. Na prática, no entanto, dentro de um quadro em que a maioria dos países viola os direitos humanos, acaba sendo a força política que determina quem é violador e quem não é”, explica Lúcia Nader, coordenadora de relações internacionais da ong brasileira Conectas Direitos Humanos.

Em seu discurso perante a Assembléia Geral, o presidente norte-americano George W. Bush disse que “o processo de reforma começa com os Estados-membros assumindo seriamente sua responsabilidade. Quando se escolhem notórios violadores dos direitos humanos para sentarem na Comissão de Direitos Humanos da ONU, eles mancham um nobre esforço e minam a credibilidade de toda a organização”, partindo do princípio de que os Estados Unidos não violam os direitos humanos de sua população e dos países com os quais se relacionam.

A criação do Conselho de Direitos Humanos se insere no conceito mais amplo de reforma das Nações Unidas. Quando o secretário geral Kofi Annan, em março deste ano, lançou o documento intitulado “Em maior liberdade: desenvolvimento, segurança e direitos humanos para todos”, em que apresentava uma série de auto-críticas em relação à organização, a questão dos direitos humanos apareceu sob o tópico de fortalecimento da ONU.

O documento de Annan dizia, por exemplo, que o sistema de promoção e defesa dos direitos humanos da ONU havia perdido credibilidade, e pedia que o Alto Comissariado apresentasse uma proposta de reforma para órgão, o que foi feito em junho passado. Pedia também a criação de “Fundos para a Democracia”, que ajudariam os países em fase de consolidação de paz a se estruturarem e a serem mais democráticos. Por fim, sugeria a criação do Conselho de Direitos Humanos, com membros eleitos pela Assembléia Geral por maioria de dois terços.

“A ONU tem um lado de funcionamento governamental e outro multilateral, de agência. No caso dos direitos humanos, isso fica muito claro. A comissão é intergovernamental, enquanto o Alto Comissariado é multilateral. Enquanto a comissão não funcionava efetivamente por sua politização e seletividade, o Alto Comissariado sofria da falta de recursos. O que Kofi Annan tentou fazer foi atacar em duas frentes: propôs a criação do conselho e pediu um plano para o Alto Comissariado, para dar mais coesão e centralidade ao sistema de direitos humanos. O problema é não dizer como”, ressalta Lúcia.

Plano de ação

O programa de direitos humanos das Nações Unidas se baseia num amplo aparato de normas e procedimentos construídos ao longo dos últimos 60 anos e que, agora, devem responder aos atuais problemas enfrentados pelo setor. Aprovado praticamente em sua integralidade pela Cúpula Mundial encerrada na última semana, o plano de ação do Alto Comissariado é ancorado num mandato de promoção e proteção dos direitos humanos e de desempenho de um papel ativo na superação dos obstáculos para sua plena realização.

A partir de agora, devem ganhar algum reforço dentro da ONU atividades como o envolvimento dos países na temática, através da expansão de escritórios pelo mundo e da equipe de campo nas diferentes regiões do planeta, garantindo velocidade nos deslocamentos, investigações, aconselhamento e assistência; o papel de liderança do Alto Comissário, aumentando sua relação com os demais órgãos da ONU e nos esforços da organização para reduzir a pobreza e avançar nas Metas do Milênio; a parceria com a sociedade civil e as demais agências da ONU, com apoio para os defensores de direitos humanos.

Para alcançar esses objetivos, o Alto Comissariado precisa de mais recursos. Atualmente, o programa recebe apenas 1,8% do orçamento das Nações Unidas – cerca de 86 milhões de dólares –, e suas atividades se baseiam em contribuições extra-orçamentárias. A Cúpula aprovou um aumento significativo para os próximos cinco anos: dobrar este percentual.

No entanto, em relação ao Conselho, o resultado da Cúpula ficou mais próximo de uma declaração de princípios do que de um plano de reforma da ONU. O documento aprovado pelos chefes de Estado se resumiu a afirmar que o conselho deve se encarregar de violações de direitos humanos, fazendo recomendações aos países, e a solicitar ao presidente da Assembléia Geral que conduza negociações transparentes para estabelecer o mandato, as modalidades de ação, as funções, o tamanho, composição e procedimentos de trabalho do conselho.

“Já houve uma queda de braço entre os países sobre a composição do conselho. Agora, tudo depende das negociações. Se os Estados do hemisfério Sul não continuarem pressionando por mudanças na ONU e se os militantes dos direitos humanos dos países do Sul não pressionarem seus Estados, tudo vai continuar como antes”, conclui Lúcia Nader.

Carta Maior