De acordo com um artigo "sensacional" do The Telegraph, o diretor da Inteligência Nacional dos EEUU foi recentemente instruído pelo Congresso a "conduzir um profundo exame sobre o financiamento clandestino russo dos partidos europeus na última década." [1] Essa divulgação — um clássico "vazamento controlado" — destina-se a avisar as entidades políticas desobedientes mas populares em toda a Europa a reduzir suas ambições de reequilibrar as funções e o peso de seus Estados-membros na União Europeia. Jobbik da Hungria, Golden Dawn da Grécia, Lega Nord da Itália e Frente Nacional da França estão explicitamente incluídos na "lista de avisos" dos EEUU, enquanto outros "partidos" não denominados na Áustria, República Checa, e Países Baixos estão sendo avisados de que estão "sob uma investigação do serviço de segurança dos EUA". Até o líder do novo do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, é suspeito de flertar com os russos. Então, de acordo com o patrocinador da história do The Telegraph, qualquer político europeu que se atreve a questionar a expansão da OTAN, a política de sanções contra a Rússia, ou a posição europeia atual sobre o conflito ucraniano, é essencialmente uma ferramenta voluntária ou involuntária da "guerra híbrida da Rússia".

Bem, isso seria engraçado se não fosse tão perigoso. Na verdade, qualquer observador imparcial poderia fazer algumas simples perguntas: por que raios as agências de inteligência dos EUA se interessam pelos desafios para a segurança interna da Europa? Eles não são os mesmos agentes que financiam, recrutam e controlam incontáveis organizações políticas, indivíduos e estabelecimentos da mídia no continente europeu? Por que eles estão tão descaradamente revelando seu domínio sobre a Europa?

Um desafiante politicamente correto argumentaria que os Estados Unidos salvaram a Europa da "ameaça comunista" após o fim da Segunda Guerra Mundial, facilitaram a sua rápida recuperação econômica, e estão ainda a salvaguardar o continente sob seu guarda-chuva nuclear. Talvez. Mas uma revisão do contexto histórico não deve começar com o plano Marshall. Em primeiro lugar, este foi lançado em abril de 1948. Desde que os nazistas capitularam em maio de 1945, um leitor mal informado pode deduzir que os Estados Unidos se encarregaram de elaborar um programa de investimento maciço para a Europa durante três anos, e... ele estaria enganado. Na Segunda Conferência "Octagon" de Quebec, em setembro de 1944, o Presidente Roosevelt e o Secretário do Tesouro dos EUA Henry Morgenthau Jr enviaram ao PM britânico Winston Churchill seu Programa de Pós-Rendição da Alemanha [2]. Esse documento altamente confidencial previa a partição e desindustrialização completa do Estado alemão. De acordo com o plano, a Alemanha seria dividida em dois Estados independentes. Seus epicentros da mineração e da indústria, incluindo o protetorado de Sarre, o vale do Ruhr e Alta Silésia, seraim internacionalizados ou anexados por França e Polônia. Seguem alguns excertos:

• As forças militares [dos EEUU] ao entrar em áreas industriais [alemãs] devem destruir todas as instalações e equipamentos que não possam ser removidos imediatamente.
• Não mais de 6 meses após a cessação das hostilidades, todas as instalações industriais e equipamentos não destruídos pela ação militar devem ser completamente desmontados e removidos da área ou completamente destruídos.
• Todas as pessoas de dentro da área devem ser informadas de que essa área não poderá tornar-se novamente uma área industrial. Por conseguinte, todas as pessoas e suas famílias dentro da área, tendo habilidades especiais ou formação técnica, devem ser incentivadas a migrar permanentemente da área e deve ser dispersadas tão amplamente quanto possível.
• Todos os semanários de jornais, revistas e estações de rádio alemãs, etc. devem ser descontinuados até que controles adequados sejam estabelecidos e um programa adequado formulado.

Esse foi o programa original de recuperação do pós-guerra para a Alemanha, conhecido como Plano Morgenthau. A notória Diretiva dos Chefes de Estado 1067 (Joint Chiefs of Staff Directive: JCS 1067), dirigida ao Comandante-Chefe das Forças de Ocupação dos EUA na Alemanha, que foi lançada oficialmente em abril de 1945, foi totalmente em conformidade com aquele documento [3].

Partição da Alemanha de acordo com o plano Morgenthau, 1944

O Plano Morgenthau rapidamente provou ser um erro estratégico. Os Estados Unidos subestimaram o impacto ideológico e cultural que os soviéticos teriam nas sociedades europeias. Confiando em seu próprio julgamento, os estrategistas americanos falharam em entender a atração que o sistema socialista exercia para a maioria da população das nações libertadas. Um vasto espectro de políticos pro-socialistas e pró-comunistas começou a ganhar eleições democráticas e a ganhar influência política não só na Europa Oriental mas também na Grécia, Itália, França e outros Estados europeus (Palmiro Togliatti e Maurice Thorez são apenas alguns que poderiam ser lembrados aqui). Assim, Washington veio a entender que sua forçada desindustrialização da Europa poderia resultar em reindustrialização de estilo soviético e eventual domínio russo do continente... Portanto, os EUA tiveram de substituir prontamente o plano Morgenthau com um nomeado em homenagem ao Secretário de Estado George Marshall... Ao longo de quatro anos, eles forneceram à Europa 12 bilhões de dólares em créditos, doações, arrendamentos, etc., com a finalidade de que comprassem... máquinas e outros bens americanos. Embora o plano, sem dúvida, reavivou as economias da Europa, seu maior efeito positivo foi... na economia dos EUA em si! Simultaneamente, uma onda de repressão política foi lançada em toda a Europa, principalmente na Alemanha.

A mídia tem em grande parte esquecido da iniciativa Soviética, proposta em 1950, de se retirar da RDA (República Democática Alemã) e reunificá-la neutra, não-alinhada, desmilitarizada, dentro de um ano da celebração do Tratado de Paz. De fato, a resolução aprovada na Reunião de Praga dos Ministros dos Negócios Estrangeiros do Bloco Soviético em 21 de outubro de 1950 propôs a criação de um Conselho Constituinte alemão, com representação paritária das Alemanhas Oriental e Ocidental, para preparar a formação de um "governo provisório todo-alemão, soberano, democrático e pacífico". É óbvio que o governo dos EUA e administração em Bonn da Alemanha Ocidental opuseram-se veementemente a essa iniciativa [4]. Enquanto um plebiscito sobre a questão "Você é contra a re-militarização da Alemanha e a favor da conclusão de um Tratado de paz em 1951?" foi anunciado em ambas as metades do Estado dividido, o referendo foi realizado e oficialmente reconhecida apenas na Alemanha Oriental (com 96% a votar "Sim"). As autoridades da Alemanha Ocidental controlada pelos EUA não responderam de forma verdadeiramente democrática. Elas se recusaram a reconhecer os resultados preliminares do referendo que havia sido realizado desde de fevereiro de 1951 (dos 6,2 milhões de cidadãos federais que tinham tomado parte, em junho de 1951, 94,4% também votaram "Sim") [5] e introduziram o draconiano e cauteloso Ato de Alteração Direito Penal (o Blitzgesetz de 1951) em 11 de julho. De acordo com essa legislação, qualquer um que fosse culpado de importar literatura proibida, criticando o governo, ou tivesse contatos não declarados com representantes da RDA, etc. seria julgado por "traição de Estado," que era punível com 5 a 15 anos na prisão. Por conseguinte, entre 1951 e 1968, 200.000 acusações foram feitas contra 500.000 membros do partido comunista e outros grupos de esquerda na Alemanha sob essa lei. Dez mil pessoas foram enviadas para a prisão, e a maioria daqueles que foram "limpos" de acusações nunca retomou suas atividades políticas. Alterações legais adicionais em 1953 na verdade aboliram o direito de livremente realizar encontros e manifestações, e, em 1956, o partido comunista da Alemanha foi banido.

Mais detalhes podem ser encontrados no documentário de 2012 de Daniel Burkholz Verboten – Verfolgt – Vergessen (Proibido-Seguido-Esquecido. Meio Milhão de Inimigos Públicos), que surpreendentemente não está disponível no YouTube.

A repressão política que ocorreu na Alemanha dos anos de 1950 à década de 1980, em comparação com eventos semelhantes em outros países europeus durante o mesmo período, é um tema muito tabu. A Operação Gladio na Itália, os crimes do regime dos Coronéis Negros na Grécia, e os controversos assassinatos de políticos europeus realistas que defendiam abertamente um compromisso histórico com o Bloco Soviético – tais como o PM italiano Aldo Moro (1978) e o PM sueco Olof Palme (1986) – todos receberam muito mais atenção da mídia. As revelações feitas por um ex-correspondente do Frankfurter Allgemeine Zeitung, Udo Ulfkotte, em seu livro Gekaufte Journalisten ("Jornalistas Comprados") sobre o mecanismo de controle de mídia na Alemanha (lembra-se do Plano Morgenthau?) representam apenas a ponta do iceberg.

A quase total ausência de reação vista em Berlim após a divulgação de Edward Snowden da cobertura de espionagem eletrônica rotineiramente realizada contra os líderes alemães pela NSA [do inglês National Security Agency: Agência de Segurança Nacional] significa que, na realidade, a Alemanha reconheceu a sua perda de soberania sobre seu próprio país e, portanto, não tem nada a perder.

Assim, após levar todos esses fatos em consideração e reler o artigo no Telegraph, você ainda tem tanta certeza de que os Estados Unidos é verdadeiramente o guardião da soberania da Europa? Não é mais provável que, usando a alegada "ameaça russa" para controlar e assediar as instancias políticas e a sociedade civil na Europa, Washington esteja fazendo avanços em direção a um objetivo simples e primitivo – o de meramente manter suas ovelhas no rebanho?

Tradução
Marisa Choguill
Fonte
Oriental Review (Rússia)

[2Suggested Post-Surrender Program for Germany”, F. D. Roosevelt, September 1944.

[4Notes for Eastern Element’s Briefing of General Mathewson”, February 15, 1951. Published in Foreign Relations of the United States 1951, Volume III, Part 2, European Security and the German Question (Document 341).

[5Flusslandschaft 1951. Frieden”, Protest in München.