A tomada do Capitólio pelos partidários do Presidente Trump é apresentada como uma tentativa de Golpe de Estado, quando este ainda está na Casa Branca. Vendo melhor, poderá ser o contrário. A liberdade de expressão acaba de ser confiscada por um Poder ilegítimo, em proveito de Joe Biden.
As aldrabices habituais
A cada eleição presidencial nos Estados Unidos, dizem-nos que o presidente cessante era um monstro, que lamentam os crimes que ele cometeu, mas que com o acesso de um novo chefe uma nova aurora desponta para a humanidade. Única excepção: a eleição de Donald Trump em 2016. Nesse preciso momento e antes mesmo de ele ser ajuramentado, explicavam-nos que este bilionário havia sido eleito na sequência de um lamentável erro, que ele era misógino, homófobo, racista, que não encarnava a «terra da liberdade», mas o supremacismo dos «brancos pobres» e os interesses dos ricos. Durante quatro anos, não pararam de nos convencer que essa apreciação estava correcta. Chamaram-no mentiroso e silenciaram as suas ideias e todas as suas realizações.
Desta vez, a insurreição sobrevinda no Capitólio permite às agências de notícias dominantes acrescentar mais uma camada. O Presidente cessante, Donald Trump, é unanimemente acusado de ter destruído a democracia que o novo Presidente Joe Biden irá, bem entendido, restaurar. Estarão prontos a deixarem-se levar de novo aqueles que se lembram das eleições de George H. Bush, de Bill Clinton, de George W. Bush e de Barack Obama ?
Sim, porque o choque causado pela tomada do Capitólio é tal que se acredita seja no que for. Se os Estados Unidos se dirigem inexoravelmente para a guerra civil [1], o que irá ser de nós, os Ocidentais ?
Foi por isso que não quiseram ver chegar a crise que começa. Apenas alguns jornais gregos haviam recentemente exposto as razões da raiva, que nós abordamos já desde há cinco anos (quer dizer antes da eleição de Trump).
Foi também por não quererem encará-la de frente, e se satisfazerem com comentários cegos segundo os quais este episódio vergonhoso não terá consequências. Mas quem pode acreditar nisso ? Claro, as coisas vão-se acalmar por um tempo e a máquina repressiva vai esmagar os manifestantes de 6 de Janeiro, mas isto não passará de um pequeno intervalo e a guerra civil não tardará.
Desde logo, os não-ocidentais compreenderam que os Estados Unidos têm tais problemas internos que já não se poderão apresentar mais como modelos para o mundo e ainda menos dar lições de democracia aqueles querem submeter.
As eleições não-democráticas
Aquando da eleição presidencial de 2000, o mundo, chocado, assistiu à posição escolhida pelo Supremo Tribunal em ignorar a recontagem dos boletins de voto na Florida. De acordo com a Constituição, ele declarou que não se devia intrometer no escrutínio de um Estado Federado e que apenas seria vinculado pela decisão do Governador Jeb Bush, quem havia declarado que o seu irmão George W. Bush tinha sido eleito pelos seus administrados. Vinte anos mais tarde, o mundo assiste à rejeição de 60 recursos interpostos por Donald Trump, segundo os quais houve fraudes maciças em muitos Estados.
Tal como previamente escrevi, de um ponto de vista jurídico dos EUA, Al Gore, depois Donald Trump perderam. Mas de um ponto de vista democrático, provavelmente eles ganharam. Verdadeiramente falando, é impossível sabê-lo com precisão, mas tendo em vista os resultados de outras eleições que tiveram lugar em simultâneo, não há a mínima dúvida. A única coisa que se pode afirmar é que esta eleição nada tem de democrática: a contagem é garantida pelos governadores que, em muitos Estados Federados, escolhem eles próprios os funcionários ou empresas privadas que a realizarão. Pelo contrário, se o sistema fosse democrático, a contagem seria efectuada pelos cidadãos em público. Todos puderam ver urnas transportadas para fora das secções de voto em direcção a um centro de contagem onde funcionários as abriam, depois fechavam as cortinas impedindo os cidadãos de ver tudo. Ninguém pode por em causa a honestidade destes funcionários, mas também ninguém a pode garantir com certeza. Uma eleição só é democrática se decorrer com transparência. Por conseguinte, esta eleição é legal pela lei dos EUA, mas simplesmente não é democrática.
Reviravoltas de situação
Para compreender os acontecimentos, devemos notar duas reviravoltas de situação que precederam o ataque ao Capitólio.
A meio de Dezembro de 2020, o Presidente Trump organizou uma reunião no Salão Oval em que participou o General Michael Flynn. Este expôs aí a sua ideia de lei marcial a fim de conseguir proceder a eleições transparentes [2]. A maior parte dos conselheiros presentes opuseram-se a isso, apesar das mudanças de responsáveis que haviam sido operadas no Pentágono. Duas semanas mais tarde, em 4 de Janeiro de 2021, os dez antigos Secretários da Defesa ainda vivos assinavam uma curta carta aberta no Washington Post [3]. Eles afirmavam que todos aqueles que tentassem instaurar uma eventual lei marcial deveriam responder por isso perante a Justiça. A unanimidade dos antigos Secretários da Defesa atesta que este projecto de lei marcial era exequível e muito realista. Segundo o Post [4], que reconstituiu esta reunião apoiando-se nas confidências de antigos Secretários da Defesa (que não participaram nela, mas que dela tiveram informação), o Presidente Trump jamais encarou manter-se no Poder fazendo uso de violência. Pelo contrário, ele apresentou queixas e deu apoio a diversas acções judiciais a fim de fazer anular a eleição. Ele preparava-se para fazer campanha para regressar à Casa Branca em 2025 [5].
O Vice-Presidente Mike Pence, que estava submetido à fortes pressões pelos jacksonianos, deu a conhecer a sua posição, em 6 de Janeiro, o dia de reunião das duas assembleias do Congresso em sessão conjunta [6]. Ele constata que o seu papel enquanto presidente da sessão é puramente cerimonial e que não lhe cabe a decisão do litígio, mesmo se uma certa leitura da Constituição lhe dá teoricamente o direito disso. Ele remete, pois, para os parlamentares. Agir doutro modo teria lançado a guerra civil que fermenta. Em momentos como este, todos sabem o que podem perder e raros são os que aceitam correr um tal risco, particularmente entre os notáveis. Assim que esta posição se tornou conhecida, vários membros importantes da equipe Trump apresentaram a sua demissão. Os jacksonianos vivenciaram estas reviravoltas como covardias e traições ao seu ideal e à sua pátria.
Algumas horas mais tarde, Donald Trump realizou um comício, não longe do Congresso, para denunciar mais uma vez a «eleição roubada» e anunciar o seu regresso para a campanha de 2024. Ele jamais apelou aos seus partidários para tomar o Capitólio, mesmo que alguns possam tê-lo entendido assim.
A tomada do Capitólio
Alguns grupos que eram marginais ao comício tentaram entrar no Capitólio. Segundo os vídeos, a polícia do Capitólio deixou-os entrar sem opor verdadeira resistência. Primeiro, os manifestantes comportaram-se com deferência num lugar a seus olhos sagrado. No entanto, haviam sido infiltrados por um grupo de Antifas. Sem que se saiba nem como, nem por quê, as coisas de repente descambaram. O hemiciclo foi invadido e os gabinetes dos parlamentares foram saqueados.
Todos aqueles que já viveram uma guerra civil sabem que é a pior coisa que pode acontecer. Tal como o filósofo inglês Thomas Hobbes, que viveu a Primeira Guerra Civil Inglesa, todos acreditam que é melhor suportar um Estado tirânico do que ser privado de Estado. (O Leviatã [7]). Tomar o Capitólio e eventualmente derrubar «a ordem» dos EUA é um acto com consequências terríveis. Mas, as coisas não foram tão longe. A polícia que tinha deixado os manifestantes entrar no prédio de repente repeliu-os com sucesso.
O próprio Presidente Donald Trump apelou à calma, mas sem a sua esposa. De acordo com a religião nacional dos Estados Unidos, a bênção de Deus— e, portanto, a paz e a prosperidade— deve descer através do Presidente e da Primeira-dama [8] sobre o «povo eleito». Ao escolher exprimir-se só, Donald Trump pôs em causa a religião nacional.
As reacções nos EUA
Parlamentares democratas, liderados pela Presidente da Câmara, Nancy Pelosi, acusaram imediatamente o Presidente Trump de ter lançado as suas tropas ao assalto do Congresso. Eles propuseram a destituição (“impeachment”-br) do Presidente embora apenas lhe restem 13 dias de mandato, graças à 25ª Emenda, alínea 4 da Constituição. Esta manobra, que já haviam evocado anteriormente, permitiria retirar-lhe o direito de se vir a a candidatar no futuro.
No entanto, o texto invocado não deverá aplicar-se neste caso: ele diz respeito a uma incapacidade imputável à saúde do Presidente. Os debates aquando da sua adopção centraram-se na crise cardíaca que impediu o Presidente Woodrow Wilson de cumprir o seu cargo no fim do mandato (2 de Outubro de 1919 a 4 de Março de 1921) e o ataque cerebral —menos grave— do Presidente Dwight Eisenhower (24 de Setembro de 1955 a 20 de Janeiro de 1961) que temporariamente o privou de algumas das suas faculdades e o levou a partilhar os seus poderes com seu Vice-Presidente, Richard Nixon.
A classe dirigente pressentiu o sopro de um enorme perigo. Que a tomada do Capitólio tenha sido uma falha da sua polícia, como nos tentam fazer crer, ou que ela tenha sido organizada sob falsa bandeira pelos inimigos de Donald Trump, mostra que aqueles que a conceberam têm a capacidade de derrubar as instituições e de afastar todo o seu pessoal.
As reacções no estrangeiro
Após um século de dominação pelos Estados Unidos, o resto do mundo continua sem saber o que eles realmente são. Ignora que a Constituição fora escrita para estabelecer um regime inspirado na monarquia britânica e que foi reequilibrado por 10 Emendas que garantem os direitos do povo. O país que Alexis de Tocqueville descreve no De la Démocratie en Amérique [9] é o do compromisso, um país de liberdade, mas em que esse equilíbrio foi rompido no decurso dos anos Obama. Cego, o resto do mundo não viu que os Estados Unidos voltaram a ser aquilo que eram nos quatro primeiros anos da sua fundação: um sistema oligárquico, desta vez ao serviço de uma classe de bilionários internacionais. Deliberadamente, ele ignorou a angústia das antigas classes médias, os reagrupamentos de população por afinidades culturais e a preparação de dois terços da população para a guerra civil.
Os média (mídia-br) chineses não param de salientar os dois pesos e duas medidas ao comparar as fotos da tomada da assembleia de Hong Kong por uma multidão furiosa e as de Washington. Enquanto os média russos, ocupados com os festejos do Natal ortodoxo, sorriem desencantados perante o seu histórico rival na terra.
Por seu lado, os média ocidentais aderiram sem reservas à «cancel culture» neo-puritana, a qual destrói todos os símbolos republicanos e os substitui por outros que glorificam as minorias, não pelo que elas fazem, mas porque elas são simplesmente minoritárias. Ao fazer isso, identificaram-se ainda um pouco mais com a ideologia que oprime «a América» [10]. Vassalos submissos, apresentaram a eleição dos EUA como se os seus leitores fossem participar nela e Joe Biden fosse o seu novo senhor.
Reagindo aos acontecimentos no Capitólio, os dirigentes europeus tomam os seus sonhos por realidades: o Presidente alemão, e antigo Chefe dos Serviços Secretos, Frank-Walter Steinmeier, declarou que manifestantes pró-Trump armados haviam tomado o Capitólio; enquanto o Presidente francês, e antigo secretário de um conhecido filósofo, Emmanuel Macron, denunciou o ataque ao princípio fundamental da democracia «Um homem, um Voto».
Não. Com raras excepções, os manifestantes do Capitólio não estavam armados.
Não. A Constituição dos EUA não estabelece de todo a igualdade entre cidadãos de todos os Estados Federados.
Sim. É realmente a classe dirigente dos EUA quem despreza a democracia e os jacksonianos quem a defende.
Desde já as enormes fortunas que estão por trás de Joe Biden apossaram-se do Poder. Elas acabaram com a liberdade de expressão. Elas «preventivamente» fecharam as contas Twitter, Facebook, Instagram, Snapchat e Twitch da Casa Branca, do Presidente Trump e dos seus apoiantes a fim de «os impedir de apelar a novas violências» (sic). Ao fazê-lo, elas arrogaram-se os poderes da Justiça e escaparam ao decreto Trump de 28 de Junho de 2020, que as obrigava a escolher entre o estatuto de portador neutro de informação ou ao de produtor comprometido de informações [11].
[1] “A guerra civil torna-se inevitável nos EUA”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 15 de Dezembro de 2020.
[2] “O General Flynn, QAnon e as eleições dos EUA”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 1 de Dezembro de 2020.
[3] “The time for questioning the election results has passed”, Washington Post (United States) , Voltaire Network, 4 January 2021.
[4] “Trump’s final efforts to overturn election create discomfort for the military”, Paul Sonne & Missy Ryan & Ellen Narashima, The Washington Post, January 6, 2021.
[5] “‘I’ll See You in Four Years’: Trump and the Ghost of Grover Cleveland”, Peter Baker, The New York Times, January 3, 2021
[6] “Mike Pence letter to Members of Congress”, by Mike Pence, Voltaire Network, 6 January 2021.
[7] Leviathan or the matter, forme, & power of a common-wealth ecclesiastical and civil, Thomas Hobbes, 1651
[8] Contrariamente a uma ideia feita, a função da « Primeira dama » não é cerimonial, mas religiosa. Ela incumbe à esposa do presidente e, se ele é celibatário, divorciado ou viúvo, à mulher da sua família que ele designa.
[9] De la démocratie en Amérique, Alexis de Tocqueville, Gosselin (1re partie 1835, 2ème partie 1840.).
[10] Os Ocidentais estão convencidos que os Negros e os Hispânicos votaram todos contra Trump. Na realidade entre os seus eleitores contavam-se 18 % de Afro-Americanos e 37 % de Latinos segundo os institutos de ciências políticas.
[11] “Executive Order on Preventing Online Censorship”, by Donald Trump, Voltaire Network, 28 May 2020.
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